tag:blogger.com,1999:blog-90573956756633185832024-03-13T03:06:34.246+00:00Peças SoltasLeonorhttp://www.blogger.com/profile/09588327057255453264noreply@blogger.comBlogger101125tag:blogger.com,1999:blog-9057395675663318583.post-87288151707240348422021-02-14T17:28:00.002+00:002021-02-14T17:28:36.395+00:00Filipe, queres casar comigo?<p> Penso no Filipe. Passam umas duas horas já pelo cair do sol e o tempo marcado pelos cortinados, lavados, secos, passados a ferro e pendurados no seu lugar, também sei que passaram umas duas horas porque tenho o estômago vazio e quase podia atirar-me às ondas do mar bravio e gélido se gostasse de mar gélido e não me tivesse ocorrido esta ideia disparatada de adentrar mar em pleno fevereiro, e isto por causa do Filipe que não sei onde parará e adivinho que talvez tenha explodido em desejo e se atirou à anónima excretando secreções hiperbolizadas por esta canícula inesperada convencidos de que o amor se resume a auges, hipérboles, a amo-tes, ais, uis, e mais, não pares agora, sem contas para pagar, máquinas de roupa para fazer e ridicularias a decidir de onde podem eruptir acusações e amuos, cansaços, coisas sem nome que se sentam em nós e sairão a seu bel-prazer, a seu tempo, como todas as coisas que se sentam em nós. O Filipe também pode estar escondido algures por aí, há pinhais e limoais, a fazer-se de morto. Eu se calhar fazia-me de morta, e dizia que sou Maria, qual Leonor, ou sou Leonor, de onde vem esse disparate de me chamar Maria, ou Nonô, toda a gente sabe que sou Nonô quando me apetece e apetece aos outros que eu seja Nonô, qual Maria e qual Leonor, a minha mãe até me queria Inês e eu teria perdido a oportunidade única de ter o nome na moda e ouvir no supermercado várias reprimendas Leonor, anda cá! Leonor, não mexas aí! Leonor, já te disse que não! O Filipe poderá muito bem negar como Judas ou alegar que Filipes há muitos, não deu conta de nada, falas de quê? quando? Ah não vi. Se eu fosse o Filipe usava talvez a primeira palavra que aprendi para responder à pergunta descarada em letras pretas com um coração que sobrevoou os céus mas hoje é dia de pôr o amor a corar, sacudir-lhe a humidade, tirá-lo da gaveta onde estava dobrado a cheirar a mofo e não se diz não. Coitado do Filipe. </p>Leonorhttp://www.blogger.com/profile/09588327057255453264noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-9057395675663318583.post-22255444171052510462021-02-11T20:11:00.000+00:002021-02-11T20:11:24.409+00:00Crónicas síncronas <p> Isto hoje estava quase para começar bem: um fim de noite à lareira, a ouvir crepitar os restos de um dia inquieto, uma noite descansada e bem dormida, e eis que se me apresenta 'um dia novinho em folha a estrear', e cito, esta frase não é minha, ouvi-a algures e parece-me muito bem. Estava cinzento e húmido e a opção de ensino não presencial pareceu-me quase bem: estou em casa, confortável, sem máscara, no silêncio que bebo em cascata, e quase parecia feliz. Às 8.15 começo a ligar-me à aula, ligo o Meet, espero que cheguem, e aí vêm eles, meio ensonados e ainda tímidos. Finalmente consigo ver rostos inteiros e pessoas e dou-me por muito feliz. Isto foi antes de eu começar a ver as caras desaparecerem, as vozes a ficarem entrecortadas e eu entrar discretamente em desespero e a perguntar 'estão-me a ouvir, meninos?’ ‘Agora estamos, mas a stora desapareceu.’ Segundos mais tarde a Libânia ficou suspensa na atividade de apresentar um objeto começado por B, depois foi o Quitério que conseguiu apresentar o segundo objeto que era um presente e também era começado por B porque era um 'book' e era o 'Erro de Descartes', e ainda tive tempo de lhe ensinar que o p é mudo em psychology e psychological e por aí fora, e estava em enlevo por um miúdo de 15 anos andar a ler o Damásio, o mesmo que num dia explicou tranquilo e carismático que pai e mãe já tinham sido vacinados e a turma comentou ‘parecias um político agora’ e político era homem bem-falante e falado de discurso escorreito e claro, que se esclareça o que é de esclarecer. Depois eles fugiram todos. Começaram por ficar bolas com iniciais e a seguir o ecrã avisou-me que tinha sido desconectada mais ou menos ao mesmo tempo de ouvir o roncar do corta-relva, e insistiu tanto que talvez pudesse haver relva no asfalto ou nos muros, a erguer-se pelos céus. Por esta altura eu tinha voltado ‘olá, meninos, voltei’, a Catilina mostrou o cão como ‘something that makes you happy’, e o Firmino o violino, sabia lá eu que o Firmino tocava violino, mas também não sabia que o Quitério lia o Damásio, ainda que não me surpreendesse que a Alina estivesse a ler ‘a subtil arte de dizer que se f*da’, nunca é tarde para aprender a subtileza. E foi tudo isto com o ronco em crescendo do corta-relva, santa ingenuidade, um corta-relva. Estávamos já na página 58 do textbook quando com a net a deslaçar-se, o corta-relva no auge e um alvorço de vozes e motores, dei por terminada a sessão síncrona do dia onze do mês de fevereiro de dois mil e vinte e um. Lá fora, duas árvores tombavam calculadamente entre indicações e instruções, diz que estavam podres, tinham de ser abatidas, só não perguntei se tinha mesmo de ser hoje, dia onze do mês de fevereiro de dois mil e vinte e um, logo quando o Quitério disse psychology e eu lhe relembrei que o p era mudo.</p>Leonorhttp://www.blogger.com/profile/09588327057255453264noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-9057395675663318583.post-18408812131331048362021-02-07T20:07:00.001+00:002021-02-11T20:09:17.884+00:00The hills are alive<p> Se calhar não devia lembrar-me disto porque estou exausta e o cansaço traz no bolso estados depressivos que me atira como rede em mares abertos. Sei que foi a primeira vez que fui ao cinema e foi isto na altura em que os adultos tinham vida própria além dos filhos e a minha mãe e a minha avó decidiram que a cidade era grande e bela e se deitaram a calcorreá-la, e agora que falo nisto, vejo quanto de ambas sou e as saudades que tenho de uma cidade grande. O meu pai levou-me e quase garantia que foi no Éden, garanto que foi no Éden, que também já não é cinema, mas nada é do que era, e eu também já não sou a adolescente insegura a aturar quem me ocupou tempo a mais e de mais e também não sou a criança que naquele dia veria o filme que me ficou para sempre, já não tenho a mão do meu pai, nem sequer sou a mulher que já fui e a que estive hoje e que desaparecerá quando me entregar aos demónios noturnos. Foi isto no tempo antes de odiar musicais mas já não gostava de favas e ainda não tinha cabelo indomável mas era no tempo em que íamos ao Jerónimo Martins ali à Rua do Carmo à procura de carne seca e feijão preto.Tenho a certeza que foi no tempo dos verões na Figueira da Foz, se se pode chamar verão aos açoites enfurecidos da areia e água fria que eu nunca permitia subir acima do tornozelo, mas havia robertos e bolacha americana e o Né chorava muito quando o queriam meter no mar. Nessa altura ainda não tinha saudades da bolacha americana nem do Né, e tenho tantas, meu primo tonto. Também foi no tempo em que a prima Deolinda morava na Rua da Beneficência, o tio Luis na Morais Soares e foi mais ao menos neste tempo que fiquei a odiar fardas verdes e que percebi que se calhar por causa das fardas verdes o Luís desertou para a Bélgica e a Dona Isaura chorou de tristeza e alegria quando o telefone tocou a dar boa nova em código na casa dos meus pais. Também foi nessa altura que apareceu o 'Fátima Desmascarada' lá em casa. Anos mais tarde fazia-se revolução mas antes eu fui ver o 'Música no Coração' ao Éden e não era Inverno, e era o Éden, tenho a certeza, com o meu pai. Eu, ele e o Capitão von Trapp fomos felizes décadas afora. Até hoje.</p>Leonorhttp://www.blogger.com/profile/09588327057255453264noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-9057395675663318583.post-66371570741269889032021-01-19T20:13:00.001+00:002021-02-11T20:14:23.782+00:00Sermões de máscara <p> Hoje quando cheguei à aula havia um enorme alvoroço. Diz que lhes proibiram tudo, agora não se podiam juntar na rua, não podiam ir para o parque desportivo almoçar, não podiam ir para o café, não tinham sítio, tudo vedado e tudo proibido. Ora uma mulher não é de pau, uma professora também não, e depois dos números absurdos e tudo à beira do colapso, comecei a sentir uma ira miudinha apenas controlada porque sou professora e porque os adolescentes são adolescentes e às vezes não se lhes pode exigir a responsabilidade que os adultos não têm. Disse entretanto à Catilina que não lhe admitia o tom, pedi ao Simão à minha frente para largar o telemóvel, e o Marcelo disse que fazia anos amanhã, dezoito. Depois perguntei-lhes se tinham visto as imagens do fim-de-semana, as ambulâncias à porta dos hospitais. Continuaram a arengar um tom abaixo até lhes por fim dizer que um almoço era coisa nenhuma comparado com o colapso iminente, que além dos seus dezasseis anos teriam mais uns setenta para viver, duas semanas em casa, uns almoços mal amanhados seriam o altíssimo preço a pagar para que os pais ou os avós não morressem dentro de uma ambulância à porta do hospital. Houve cabeças baixas e silêncio, a seguir começámos a aula. Ninguém mais reclamou.</p>Leonorhttp://www.blogger.com/profile/09588327057255453264noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-9057395675663318583.post-35121164124521988072020-12-31T20:16:00.001+00:002021-02-11T20:17:26.016+00:00Meio cheio<p> Nápoles, Dublin, Torrevieja, Poznań e Madrid não se cumpriram. Naqueles primeiros dias de enorme solidão profissional, fechada em casa e sem saber exactamente o que fazer, perguntei-me vezes sem conta enquanto preparava aulas como é que ia fazer agora, como se faz afinal isto de dar aulas à distância, como é que vou dar a volta a esta porra, estava sozinha, entregue a mim mesma, e passei a dormir bem, uma façanha que já não conseguia há anos. Na aparente solidão encontrei o prazer do silêncio em que sempre me encontro, a acalmia de não ter ninguém à minha volta a perguntar-me coisas, a chatear-me com alíneas, a moer-me a cabeça com ridicularias, folhas de excel e merdas sem nexo, e foi bom. Tinha escola a mais na minha vida, não alunos a mais, a primeira lição que tirei daqueles dias de beber silêncio e saborear os pores-do-sol da janela da sala, agora também sala de aula. Havia, na verdade, coisas a mais na minha vida: supermercados, centros comerciais, compras. Sem eles, passei a comprar os molhos de nabiças e grelos à porta da mercearia, descobri que sabia esperar mais do que sabia, perserverar, ouvir, confiar, e nunca sucumbir a dias plúmbeos, jamais à histeria e nunca ao medo. Houve abraços por dar aos meus amigos no momento em que eles precisavam. Houve distância física como se todos tivéssemos peste, deixei cair os braços que ficaram hirtos e inúteis junto ao tronco não fossem cair em tentação dum abraço espontâneo, o toque de que também sou feita, tudo tão estranho e distante. Houve sempre gente em que pensei sempre, agora que o trabalho se fazia morto. Houve mar e sol e cor, caminhadas e maresia, liberdade enfim. Houve gatos que chegaram e partiram, emoções com as quais lutei três meses certos. Houve amigos a quem os confiei e a quem estarei eternamente grata. Uma planta no jardim onde dorme a nossa Lolita, e um adorável bicho felpudo fez-se nosso. Houve gente de quem me aproximei, gente de quem fiquei ainda mais próxima, houve Açores na minha vida, sabem os deuses por que e como amo aquela terra de paixão, e houve risadas sem fim com a minha mãe, três dedos de raizes de cabelo branco, unhas rentes sem glamour nem brilho, houve afectos, muitos, houve ver o copo meio-cheio e sempre o que penso quando tenho uma dor forte, vai passar, há-de passar. Ninguém sai incólume deste ano. Eu saí mais eu. Obrigada a quem esteve desse lado. 'No man is an island'. Nada mais certo.</p>Leonorhttp://www.blogger.com/profile/09588327057255453264noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-9057395675663318583.post-72758951941812334922020-12-18T20:20:00.005+00:002021-02-11T20:20:59.509+00:00STFU<p> Foi isto depois de ter encontrado um sítio onde o teclado de computador não refletia qual bola de espelhos dos anos setenta, deus os tenha quase todos em descanso, abençoados Bee Gees que tanta alegria deram ao mundo, me tinha acomodado junto à janela e aguardado paciente os avisos do ecrã à minha frente Esta operação poderá demorar alguns minutos e Estamos a preparar tudo para ti. Depois de me mandar esperar fez-se luz, a essa hora tinha já desinfectado tudo num raio de um metro e encetei a tarefa dos mesmos dias da semana à mesma hora. E foi quando me levantei para arquivar insignificâncias que se rompeu o silêncio aparente de computadores a roncar, folhas a restolhar e furadores a furar com a entrada triunfal da ave agoirenta de fim de tarde. Que as vacinas assim e assado, vociferou, a de Oxford tinha provocado reações adversas, ah pois, e o pior de tudo, ia ele a dizer, quando senti uma ira miudinha vinda do fim do estômago qual olho do furacão, um rodopiar em crescendo com letras a formar exclamações profanas que ainda tive tempo de apanhar CALA-TE, CRL! o pior também era a nova estirpe do vírus, continuou, muito mas muito pior, mais contagiosa, mais perigosa e mais letal. O redemoinho que ainda silvava nas entranhas ameaçou outra vez com as profanidades contidas que ele nem por um momento pressentiu, ficará por saber se pela minha arte de esconder impropérios se por total inabilidade intuitiva do anunciador do fim do mundo. Não contente com a ausência de reacção, não se deve alimentar trolls, chatos inconvenientes e gaivotas, chamou-me em seu auxílio Olha, sabes como se faz xcgsgujojdv aqui no programa. Não, respondi, e ele disse Acho que descobri. Chega aqui. Podia ter alegado o Covid, covirus, covi, mas os deuses condenam-me às vezes a uma estranha obediência e fui. Ele disse Vês? É aqui, aproximando-se. E eu Ah, 'tá bem, a ver se a vontade de lhe gritar CHEGA-TE PARA LÁ, CRL! se me esfumava pelos ouvidos. Depois deu-me fome e fui comer uma maçã assada. Passava das 16.30 e o dia já ia longo. O cansaço também.</p>Leonorhttp://www.blogger.com/profile/09588327057255453264noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-9057395675663318583.post-15001130175647010022020-12-16T20:21:00.002+00:002021-02-11T20:22:18.125+00:00Abraço <p> Era sol e frio lá fora quando a Marinela se aproximou mais do que o costume, 'fessora, estou tão feliz, tão feliz'. Os cabelos longos e lisos como cortinas aprumadas ao longo do rosto que são olhos sorridentes, mesmo ao lado da Edite, a quem eu antes, quando ela se ajeitou de costas para a janela, tinha gabado o carrapito encaracolado a sair do carapuço do anoraque. Foi a primeira vez. A Marinela não desistiu e disse 'fessora, posso dar um abraço?' e eu de fome de abraços e toque e afetos anuí de máscara e mãos lavadas e senti de perto a felicidade incontida na Marinela, bem perto, minha índia de falar doce, para quem a mãe é a avó e pai é o avô. Por esta altura a Edite tinha libertado a reserva que a traz distante e foi isto quando puxou o carapuço para trás, desamarrou o carrapito encaracolado no cocuruto e brindou-nos com o esplendor e a exuberância do longo cabelo cacheado pela primeiríssima vez, uma intimidade que tivemos de merecer porque a Edite não se dá de confianças e é uma mulher forte e decidida a despontar no fim dos seus dezassete anos. Depois riu-se, e sorriu-se e todos lhe elogiámos mais uma vez o cabelo solto e ela confessou que a mãe era branca e não sabia lidar com aquele cabelo em criança e que lhe fazia coisas horríveis, disse ela, e riu-se tanto da falta de jeito da mãe que se calhar sentia a falta dela mas não tanto como o Bonifácio quando lhes atirei 'meninos, sou mais que vossa mãe' e ele disparou 'isso é de certeza que a minha não quer saber de mim para nada', logo depois de quase termos todos chorado com um vídeo de chimpanzés e o Simão ter contado como resgatou o cão de maus tratos, e todos os outros cachorros num dia de jogar futebol. Se a leveza se contasse havia dez mil levezas naquele cubículo com janela para o pátio, se os afetos se disciplinassem por número e quilómetro havia bem mais de dez mil e todos fomos leves e etéreos como se lá fora o mundo fosse o mundo. Não contámos em algarismos, metros cúbicos ou quadrados, quilómetros ou milhas, que interessam medições se pudermos ter o abraço da Marinela e a honra da Edite ser a Edite. Depois foi hora de sair. A Marinela disse 'adeus, 'fessora'. A Edite arrumou o cabelo e prendeu-o no pompom volumoso de sempre a sair do carapuço preto. O Bonifácio não falou mais da mãe. A Catilina já tinha recuperado do vídeo de chimpanzés e o Simão havia arrumado o telemóvel com as fotografias do cão que agora chama seu. Eram 13.10 e ninguém se queixou.</p>Leonorhttp://www.blogger.com/profile/09588327057255453264noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-9057395675663318583.post-50735905981888103612020-11-29T20:23:00.001+00:002021-02-11T20:24:27.458+00:00Lonjuras<p> Hoje quando abri a caixa onde guardei os ornamentos para a árvore de Natal abri a caixa das memórias de uma vida longe e perto. Estava um dia gélido e cinzento, lá pelas quatro, o dia começou a esconder-se e depois subi a rua para um outro mercado onde me aconcheguei com vinho quente. Terei ajeitado o gorro e composto o cachecol, tentativa quase vã de me proteger do frio tão frio, e não sei se terei sido infantilmente feliz nestes gestos insignificantes. A reconstituição da memória gosta de pensar que sim e não serei eu a contrariá-la. Ficarei eternamente plasmada de gorro a aquecer as mãos no copo de vinho escaldante, enrolada no casaco mostarda, e feliz. </p><p>Na rua intermédia comprei os ornamentos de madeira que reencontrei hoje e uma árvore de Natal tosca de troncos de madeira sobrepostos que carreguei comigo sem saber que a faria recordação de um tempo perdido. O frio, o mercado, o gorro, o vinho, a vida livre. Tudo está longe, tão longe que é memória. Abri a caixa. É tarde agora.</p>Leonorhttp://www.blogger.com/profile/09588327057255453264noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-9057395675663318583.post-26392395380281321082020-10-29T20:27:00.001+00:002021-02-11T20:28:44.306+00:00Can you see the real me?<p> Isto foi numa outra vida, na outra vida em que eu andava a aprender a ser professora com quem sabia e com quem não sabia mas achava que sabia, como tudo na vida. Nós rimo-nos muito no dia em que ela apareceu com um lenço ao pescoço atado com um nó para ocultar o chupão roxo, o sinal óbvio de luxúria a que julgamos a salvo os professores, era humana afinal, só faltava vê-la às compras no supermercado. Também dizia que eu era uma mulher inteligente, música para os meus ouvidos, e sabia o óbvio, o que os professores sabem e intuem, que eu não estudava nada. Não estudava. Eu adorava a cadeira e gostava daquela alma longilínea, se calhar as almas não tem forma, mas o corpo alto e esguio, uma conversa e aulas estimulantes e eu com vontade de tudo saber eram o cocktail perfeito que me trazia enleada no erotismo de aprender. </p><p>As redes sociais trouxeram-me de volta pessoas a quem tinha perdido o rasto e que me deixaram feliz. Durante uns dois anos regressaram sucessivamente à minha vida, alguma partida do universo ou o acaso e a aproximação proporcionada por esta vida virtual. Ela apareceu também, mas já não tinha a alma longilínea, talvez nunca tivesse tido, tinha picos como os cactos da piteira, e constituiu uma das minhas enormes desilusões por aqui. A professora que me encantou albergava uma mulher de pensamento enviesado, a destilar amargura e a partilhar não raras vezes notícias falsas. É sempre só e apenas uma questão de expectativas. As minhas, como noutras situações, eram altas e, vejo agora, efabuladas. E é sempre e só uma questão de tempo, a desilusão é certa como a bruma de outono, nós é que insistimos no perfume sonhado da primavera.</p>Leonorhttp://www.blogger.com/profile/09588327057255453264noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-9057395675663318583.post-33419759814229714242020-10-10T20:30:00.001+01:002021-02-11T20:30:58.496+00:00<p> É domingo, estou estendida no sofá. Tenho uma calmaria por este corpo fora incapaz de irritações ou aborrecimentos, ouço a minha respiração ritmada e levemente audível, podia ser a Julieta a ressonar, mas não, é o meu corpo que ronrona na tranquilidade de mim. Espreito o que vai por aqui. Tanta amargura, tanto mal-dizer, tudo tão negro, tantos palpites sobre uma doença que nos traz cativos e sobre o qual todos sabem tanto que é surpreendente como não são galardoados com o Nobel de tudo saber e sobre tudo palpitar, criticar, vociferar. A máquina da louça gorgulha e ronca, soubesse eu entender-lhe a linguagem e talvez estivesse também ela sonoramente a manifestar-se contra o uso de máscara, o não uso de máscara, a China e o Trump, os números do Covid, da Sars-Cov2, das zaragatoas, do SNS, dos malandros dos professores, o Costa, da vida dos outros. </p><p>Todos os dias me faço à estrada e entro na escola, encontro colegas e amigos à distância, dou aulas aos meus alunos, rio-me com eles, ouço-os. Nunca o conseguiria fazer se estivesse prenhe de tanta amargura, maledicência, desalento e medo. Nem sequer viver e sei que mais tarde ou mais cedo o meu corpo, eu mesma, se viraria contra mim. É domingo. Podia ser segunda. Não tenho espaço para apocalipses nem paciência para sabedoria superlativa sobre tudo e nada. Há sol lá fora. Não faço nada aqui.</p>Leonorhttp://www.blogger.com/profile/09588327057255453264noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-9057395675663318583.post-18915111300610080762020-10-04T20:32:00.001+01:002021-02-11T20:33:16.832+00:00365 dias do gato<p> </p><p dir="ltr">Hoje é o Dia do Animal, eu diria que este foi o ano do animal, o ano do gato cá em casa e em mim. Começou no fim do ano passado com uma gatinha branca linda e sedutora que nunca largou esta casa e a vizinhança. Ainda me convenci de que tinha dono, apareceu uma ou outra vez escovada, ou então foi mesmo wishful thinking ou negação, o que tenho em clarividência tenho em negação e tudo pode acontecer, abandonar um animal está entre o que mais odeio e desprezo num ser humano, talvez me protegesse da crueldade de deitar fora um animal. Ela era dócil e muito habituada a humanos. A Lolita, por seu turno, começou lentamente a acusar o peso dos mais de dezasseis anos, chegou pela mão dos meus pais e pela paixão imediata da minha mãe por aquele bicho que achei tão estranho, nunca tinha visto uma tartaruga, e que ela escolheu como nossa com o coração. Nós sentimos que este seria o último ano da Lolita, só não sabíamos quando. A Conchita, assim foi baptizado aquele pedaço de doçura e sedução de pêlo farto, ficou prenha do Juvenal, o gato não residente e obviamente acarinhado e alimentado por nós, e confiou e confiou-me o cuidado de quatro adoráveis gatinhos bebés que reconheciam a minha voz muito antes de abrirem os olhos. Logo a mim, rapariga nada ligada à maternidade e a quem seres pequenos fazem muita impressão, detesto sentir que alguém depende de mim. Os Conchitos eram lindos e doces mas não seriam meus, e, portanto, foi emocionalmente um desafio não me poder amarrar ao Miguelinho, à Amélie, ao Tomé e à Nikita mas também soube, sempre soube se for honesta comigo, que era tarde de mais quando entre lágrimas os entreguei um a um aos meus amigos que foram tão generosos e os acolheram e amaram, e amam. Era demasiado tarde para o conseguir fazer com a Conchita também. Quem tem animais sabe: a cumplicidade, a intimidade, os pedidos de ajuda e a confiança ficam tatuadas na nossa alma, o coração é sempre o mais fácil de convencer. A Lolita começou a piorar, restou-nos reforçar todo o amor que tinha sido uma constante ao longo dos dezasseis anos e meio, o carinho imenso de quem nos ajudou, e a quem estarei eternamente grata, a acompanhá-la na partida. Deixámo-la adormecer ali no sofá da sala, ela assim decidiu, estava tranquila, aconchegada, e fui-a sentido afastar-se. Quando a pontinha do rabo deixou de reagir como sempre tinha feito ao meu 'Lolita' deixei-a aconchegada, e adormeceu para sempre. Neste equilíbrio de forças entrou a Conchita com compreensível apreensão da Ruiva, da Julieta e da Clarinha, há bufadelas e rosnadelas, nesta nova realidade cá em casa. Todos os dias da janela da cozinha vejo florescer a planta que colocámos sobre o sítio onde eu e o <span style="background-color: #1877f2;">Hélder</span> deixámos com as nossas mãos a nossa eterna Lolita, numa quase madrugada do último dia de Agosto. <br />
A esta hora pensarão o de sempre, mas falas assim de gatos? Os gatos têm sempre o melhor de mim: não me julgam, são verdadeiros e transparentes, não fazem concessões hipócritas, amam-nos sem a obrigação da fidelidade, amam-nos porque nos amam, como eu entendo o amor. São uma experiência estética e sensual, passeiam-se de caudas no ar sem falsas modéstias, e exibem o seu charme sem pudor. Se calhar podíamos aprender algo com os gatos ou amar simplesmente. É mais do que suficiente.</p>Leonorhttp://www.blogger.com/profile/09588327057255453264noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-9057395675663318583.post-82678563971385814852020-10-01T20:34:00.001+01:002021-02-11T20:35:48.174+00:00Corar ao luar<p> Podia ser aquela camisola preferida, o top cinzento de momentos de solidão aprazível, o vestido cor de abóbora que me disseram hoje ficar a condizer com a casa de banho da escola, ou as botas de camurça que levaste na correria do quotidiano para a cozinha e que salpicaste com o azeite virgem suave, nem sei de onde vêm estas expressões ridículas de virgindade patriarcal. Podes ser tu. A vida que te salpica de manchas para as quais não há solução, não são nódoas, são marcas. Tu não sabes. Ainda. E lavas. Lavas outra vez, esfregas com a raiva de dias amargos e se tomares atenção, repara bem, continuam lá, mais ou menos percetíveis, os outros não vêem. Estendes-te ao sol, deixas-te corar ao luar, com sorte apanhas orvalho e estarás hirto e gelado que nem bacalhau da Islândia ou da Noruega, tanto faz para ti, que tremendo disparate e que grata memória de infância. Não saiu a marca. Esfregas-te mais. Outra vez. Outra ainda. Vê lá se se notas alguma coisa. Não vejo nada, dizem-me, não se nota. Tu sabes que não se nota. Que notam os outros de ti? Lavas a vida inteira, esfregas, coras-te ao luar. Tu és o top cinzento, as botas de camurça, se calhar o vestido cor de abóbora. Desiste de esfregar. Esquece o corar ao luar. Não sai mais. Vê lá se notas alguma coisa. Não vejo nada, dizem-me. Eu sei.</p>Leonorhttp://www.blogger.com/profile/09588327057255453264noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-9057395675663318583.post-87303899362791095202020-09-26T20:40:00.001+01:002021-02-11T20:42:05.548+00:00<p> Vou dormir, penso, dizem os entendidos que estes anúncios servem para autorregularmos o comportamento, e assim faço, convenço-me de que vou dormir, pode ser que se me afastem inquietações e possa repousar o espírito como abandono os sapatos quando chego a casa.</p><p>Assim farei, largo-as ao despir-me e dispo-me delas, e do mundo. Amanhã posso fazer uma máquina de roupa de negritudes e inquietações, expressão tão tola como fazer febre, e deixá-las na centrifugação mais forte, com sorte encolhem para tamanhos insignificantes. Não ladram cães hoje. Não há vento nem vozes.Tanto silêncio que me aninharei nele, despojada de dias e inquietudes, farei como os gatos enrolada em mim mesma a dormir-me-ei numa ode aos pronomes reflexos.</p>Leonorhttp://www.blogger.com/profile/09588327057255453264noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-9057395675663318583.post-10910562193449360732020-09-24T20:43:00.001+01:002021-02-11T20:44:37.301+00:00People are strangeUma mulher tem um dia preenchido, abandona as aulas e a escola, e esperam-na compras ridículas de supermercado: não havia detergente para a louça. Adentra o dito estabelecimento que evita tanto como janeiro, repara que há vinhos em promoção, compra uns sprays desinfetantes, cápsulas para café, que acabe o mundo menos café e pores-do-sol, deixa que baixe sobre ela o deusnossosenhor dos jantares frugais, uma salada iceberg coroada com um abacate em meias-luas, para a seguir ceder a Diónisos e Lúcifer e comprar um chouriço de porco preto cheio de gordura e inomináveis substâncias malévolas e pecadoras, que Apolo me perdoe, um pedaço de queijo amanteigado da Terceira que casa na perfeição com o Picaroto que repousa paciente no frigorífico, e manda às urtigas a intenção da frugalidade, adia-la-á para dias também eles frugais e desinteressantes. Falta-lhe álcool para castigar o chouriço e o ver a retorcer-se na chama excitada pela gordura. Volta quase ao ponto de partida, ao corredor de tampões de ouvidos e preservativos e procura álcool, simplesmente álcool como a Maria do folhetim da rádio, benzadeus, a esta hora estará a fazer tijolo, pobre alma sofredora. Aguarda-a uma exposição abundante de álcool, mas gel. Ele há de vários tamanhos, espessuras e texturas diversas, aromas e fins distintos. Há de tudo. Um escaparate inteiro que àquela hora me confundia e desesperava. Faltava apenas álcool a 96°, daquele bravo que arde em força. Voltar para trás era refazer planos. Não depois de ter o Assobio no carrinho e uma terrível vontade de conforto. Vi-me pois na contingência de usar álcool-gel a cheirar a lavanda, o rosmaninho fica quase sempre bem com a carne, e isto porque não havia com cheiro a tomilho, o casamento perfeito. Os Doors é que a sabiam toda: 'Strange Days'.Leonorhttp://www.blogger.com/profile/09588327057255453264noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-9057395675663318583.post-74484669980564584902020-09-18T20:45:00.001+01:002021-02-11T20:46:31.889+00:00Outono-Inverno<p> Os primeiros dias de chuva trazem o prenúncio do fim, a inviabilidade de pernas ao sol e pés descalços, de correr para apanhar pores-do-sol fúlvios e superlativos. Lá fora a natureza impacienta-se ao som do vento e da chuva, a cadência das pingueiras é o silêncio desta manhã de outono precoce. A seu tempo chegarão marmelos e diospiros, castanhas e cachecóis, a relva ficará mais verde, as gatas enrolar-se-ão em sonos longos e beatíficos e eu voltarei a invejá-las na liberdade e nos caprichos. Há-de haver lareira e um copo de tinto no remanso de afazeres arrumados, eu na minha ostra fechada ao mundo, perfumada de preticor e maresias. Troveja agora. Somos a sucessão dos dias que escolhemos e a soma de estações passadas. Sou outono hoje.</p>Leonorhttp://www.blogger.com/profile/09588327057255453264noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-9057395675663318583.post-41654922470076574112020-09-12T20:47:00.003+01:002021-02-11T20:50:20.073+00:00Silêncios e ausências <p> Diz-se que não há nada mais certo do que o fim da linha, e que a morte faz parte da vida. Se assim fosse aceitá-la-íamos com serenidade e a ingenuidade de que nos fazemos estrelas, e que um dia nos encontraremos lá nesse poético inexistente local etério. Arranjamos panaceias para a ausência que nos esmaga e corrói por dentro, não sofreu, chegou a sua hora ou não sofre mais. E nestes momentos de terrível solidão, a morte traz-nos sempre solidão, somos nós sozinhos a braços com o vazio óbvio de estar e já não estar, como dizia Saramago, encontramos conforto mesmo momentâneo de quem nos acompanha e está, a dicotomia ausência/presença num talvez paradoxo vida e morte. Presença na ausência e vida na morte. As palavras confortam, um telefonema, uma mensagem relembram que alguém se lembrou de nós mas não há nada que substitua um abraço e a presença física. Perduram sempre. Sinto ainda os abraços e a presença de quem me acompanhou na partida do meu pai, de quem me disse 'estou aqui' em momentos de escuridão. Este malfadado ano de 2020 levou as mães de amigos meus. Primeiro o telefonema em lágrimas, as minhas também, depois o meu telefonema para substituir o abraço, e hoje mais uma vez, abraços pelo telefone, não sei bem como se faz, dizem-se coisas desajeitadas, soltam-se palavras desengonçadas, quando nos apetece ir ter com os amigos e estar lá, estar presente, dar um abraço, dois, chorarmos juntos se chorar nos apetecer ou apenas estar e partilhar silêncios. Não fiz nada disso. Fiquei quieta em casa, a tentar que o meu abraço chegasse na distância, e só há tristeza, e uma enorme impotência. Há quem ache que o Covid é uma oportunidade de balelas alternativas de crescimento e mudança, do universo a rejenerar-se e a natureza armada em Greta a dar-nos uma reprimenda punitiva pelo desleixo e incúria. Só lhe encontro solidão, tristeza, miséria e dispenso as lições de moral. Deve-me todos os momentos em que não pude estar presente e abraçar os meus amigos, e isso não é crescimento nem oportunidade. É uma imensa devastação. Um dia dar-lhes-ei estes abraços, sei, chegarão sempre tarde, não obstante.</p>Leonorhttp://www.blogger.com/profile/09588327057255453264noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-9057395675663318583.post-1785554120082799722020-09-09T20:53:00.002+01:002021-02-11T20:54:27.667+00:00<p> Não sei muito bem se isto que tenho é sono ou o dia a escorrer-se-me corpo abaixo como a toalha estendida ao vento, as almofadas açoitadas, mantas a largar gotas que marcam um compasso. Assim o dia. A noite segue descendente sobre e sob o corpo abandonado sem pudor ou recato. Coxas e pernas sofá afora, pedaços a fugir às amarras. Talvez seja só sono, ou cansaço. Há grilos insistentes, um cão a ladrar longe de fala estridente e eu a sentir o dia partir. Se calhar tenho outras coisas, silêncios instalados que me trazem calada ou maresias íntimas recolhidas como a mulher recolhia vontades e amanhã não comerei pão no jejum pudico de não adentrar outros. Estico as pernas e contemplo as unhas pintadas de vermelho-framboesa, alinhadas com as das mãos, e as pernas beijadas pelo zénite, tudo efémero e insignificante. Podiam ficar assim sempre, sou mais feliz amada pelo sol mas o outono trará recolhimento e pudores, e já não apanharei maresias. Que interessa o meu vermelho-framboesa, o cansaço e o dia a deslizar-se-me? Tanto quanto o cão de ladrar estridente, os pudores de outono, as pernas beijadas pelo zénite temperadas de maresia ou estas palavras. Coisa nenhuma.</p>Leonorhttp://www.blogger.com/profile/09588327057255453264noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-9057395675663318583.post-52006523148602242812020-08-15T17:56:00.004+01:002020-08-15T17:56:58.411+01:00Quanto <p>Às vezes pergunto-me quanto tempo. Quanto tempo levamos a ser nós, em quanto tempo se cura um amor falhado, quanto tempo durará até que as estações se tornem unas, e possamos admirar outono, inverno, primavera e verão com igual encanto. Leva tempo. Quanto tempo nos falta ainda. Que tempo temos de sobra para dizer tudo, amar tudo. Quanto tempo nos sobeja para beber a vida de champagne sablé, abrir a boca em taça e sorver o suco das ostras cruas do salgadiço e maresia de nortadas pretéritas e futuras de que sou feita. Quanto tempo? Quanto tempo leva a aprender o silêncio e a saboreá-lo como um pêssego maduro a quem pomos os lábios rotundos, lúbricos. Quanto tempo precisamos para dizer não quero, não vou, não faço. Quanto tempo é preciso para dizer quero, reflexo também. Quanto tempo ainda para oxímoros, aliterações e eufemismos, e palavras.</p><p>São dezassete e dezasseis e o vizinho não sabe quanto tempo ainda. Quanto tempo vai agredir os meus ouvidos com uma rebarbadora ou uma serra elétrica ou uma aparafusadora, pode muito bem ser que de bricolage só sei ver a horizontalidade perfeita, nem um milímetro a mais ou a menos, quase como a intuição precisa que nem a balança de pratos na mercearia morta na rua da minha mãe, e eu criança. Talvez seja isso que ele procura a um sábado à tarde enquanto tento bronzear as pernas, apaziguar-me de tudo, e abocanhar o silêncio. Não sei quanto tempo. Não se sabe ainda. </p><p>Calou-se. Alguém varre agora os despojos em ritmo cadente. Não se sabe quanto tempo. </p>Leonorhttp://www.blogger.com/profile/09588327057255453264noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-9057395675663318583.post-1455912535440197172020-08-07T10:17:00.002+01:002020-08-07T10:17:30.598+01:00Intermitências do sono<p>Pudesse eu lembrar-me como te reencontrei e talvez soubesse de abraços longos e envolventes ou beijos furtivos que se tornaram longos e quentes como a brisa nocturna de verões cálidos. E presentes. Não sei quantos anos de ausência. Dez, quinze, sempre. O epitáfio que quase te escrevi, o anúncio aflito à tua procura, e as partilhas que hoje nada há além de likes e partilhas. Nao estavas nem eras. Fosse eu outra coisa que não eu, e pouco me interessaria porque voltaste. Se calhar, o jeito doce de te chamar, vem, meu amor, vem agora, a mulher convenientemente submissa, astuta e matreira para atrair o objecto desejado, ou o ímpeto de te sacudir nas horas impróprias, és feito de incógnitas e surpresas. Tantas que voltaste sem mais. E agora, neste mesmo momento em que arrumo o dia e solto o corpo estás perto e somos um até as palavras me faltarem e restará o silêncio e nós. Fica comigo. Preciso-te, meu sono adorado. Tanto.</p>Leonorhttp://www.blogger.com/profile/09588327057255453264noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-9057395675663318583.post-51962338163735642902020-08-02T11:02:00.000+01:002020-08-03T11:05:33.000+01:00Fim de tarde e isso<div style="text-align: justify;"><span style="background-color: white; color: #1c1e21; font-family: Helvetica, Arial, sans-serif; font-size: 14px; white-space: pre-wrap;">O</span><span style="background-color: white; color: #1c1e21; white-space: pre-wrap;"><font face="inherit"> sol de fim de tarde tem a brandura de um amor ternurento. Aquece-me o braço e a perna direita enquanto me sento no degrau morno de um dia de verão incerto, o mais certo dia de verão a oeste. Sopra vento de baixo e que pelos pontos cardeais por onde me oriento seria de oeste, vem do mar, e o mar está a oeste mas forte e impiedoso só pode ser do norte, não tem meias palavras nem cerimónias, poucas concessões e a determinação irritante dos teimosos solitários. Faço sombra à Julieta, sentada de pernas escachadas sem pudor e pés nus no chão. A roupa estendida ondula ao sabor do vento e eu vejo as várias mulheres no macacão preto, no vermelho, no de flores brancas e verdes com um centro amarelo, sou menos eu no vestido longo e fluido de flores pequenas que desencantei na memória do guarda-roupa. Se calhar quero ser o que já não sou mas o vestido serve-me, assenta no peito na perfeição. Talvez não seja assim tão outra. Agora que me virei tenho o sol de frente e uma revoada de vento açoita os pedaços com que cubro o corpo, até as intimidades resguardadas se agitam levemente, e o perfume do detergente em promoção no supermercado augura a sensualidade dos lençóis lavados e secos ao vento e ao sol. Os estendais contam tantas estórias e desvendam outras tantas intimidades, se os observamos atentamente. Um olhar indiscreto sobre quem somos por baixo do que aparentamos ser, de gravatas e composturas, blusas imaculadas de ferros prendados. Velha, um dia, podia sentar me numa cadeira de abrir ou de fechar, é sempre tudo uma questão de perspectiva, e contar os outros com as mãos cruzadas sobre a barriga rotunda, se calhar nessa altura já teria barriga, mas os escritores não se revelam em cadeiras de abrir, agora está frio, eu tenho de apanhar a roupa e também nunca serei escritora.</font></span></div>Leonorhttp://www.blogger.com/profile/09588327057255453264noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-9057395675663318583.post-10626083988312328032020-07-30T11:06:00.002+01:002020-08-03T11:08:06.025+01:00Crescente<div style="text-align: justify;"><span style="background-color: white; color: #1c1e21; font-family: Helvetica, Arial, sans-serif; font-size: 14px;">Sem lentes nem óculos, a lua está envolta em névoa enquanto me espreguiço do dia e o deixo partir com a brisa muda. Longe. Vai. Larga-me agora que a noite me abraça num verão fingido e me lambe os braços com a cerimónia dos amores inexperientes. Fecho os olhos como no tempo em que adentrava a noite sem óculos nem lentes e os cerrava em fresta como foco, que mania esta de fechar os olhos para ver melhor, logo à noite em que, dizem, todos os gatos são pardos, como se todos os gatos fossem sempre pardos. Depois procuro na miopia e na névoa a fase da lua. Cresce? Não me sei às vezes.</span></div>Leonorhttp://www.blogger.com/profile/09588327057255453264noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-9057395675663318583.post-83695128386837768682020-07-27T11:08:00.001+01:002020-08-03T11:09:52.165+01:00Traços descontínuos<div style="text-align: justify;"><span style="background-color: white; color: #1c1e21; font-family: Helvetica, Arial, sans-serif; font-size: 14px;">Ao que parece os programas sobre futebol na SIC N acabaram. Parece que eram tóxicos e isso. Para mim que de futebol só vejo o garbo de alguns jogadores, ai meu rico Virgil van Dijk, vá, chamem-me sexista agora, os programas eram uma grande peixeirada. Se fossem mulheres estariam todas ou com tpm ou com o período ou na menopausa ou com falta de homem. As mulheres têm sempre algo que desculpe as suas convicções e justifique a sua determinação. Assim eram só machos-alfa a discut</span><span class="text_exposed_show" style="background-color: white; color: #1c1e21; display: inline; font-family: Helvetica, Arial, sans-serif; font-size: 14px;">ir fervorosamente o desporto-rei, rapazes entusiasmados com a bola, já se sabe como são e desculpam-se os exageros, os decibéis e algum desajuste de linguagem. "A SIC Notícias decidiu descontinuar os programas de desporto (...)" anunciaram. E o que eu gosto deste 'descontinuar', que belo eufemismo. Vou passar a usar nas mais variadas situações: 'peço desculpa, mas a minha paciência para te aturar foi descontinuada'. Pode ser a paciência de tudo, de ouvir dislates, e até a vontade de pessoas, 'a minha vontade de ti foi descontinuada', na escola posso sempre alegar que 'o cumprimento acéfalo de tarefas burocráticas foi descontinuado' e passarei a fazer o que a inteligência e o pragmatismo prescreverem, correndo o sério risco de me descontinuarem também. E quando me acharem muito diferente posso sempre alertar para o óbvio 'essa mulher de que falas foi descontinuada', tal como o cano do meu aspirador quando lhe virei as escovas de borco, ele se finou num estalido seco, e quis comprar um cano novo, também ele tinha sido descontinuado. Como nós todos, peças que se descontinuam, a pele lisa, as mamas hirtas, o contorno do rosto, as pálpebras, as barrigas firmes de onde se avistavam os pêlos púbicos. Neste covidiano as possibilidades são infinitas, a pior delas todas é a liberdade ter sido descontinuada e com ela quase os afectos e o toque, os beijos, os abraços, a proximidade, a genuinidade da aproximação quando revemos ou conhecemos alguém. Descontinuámo-nos.</span></div>Leonorhttp://www.blogger.com/profile/09588327057255453264noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-9057395675663318583.post-15512130772777343742020-07-25T11:10:00.000+01:002020-08-03T11:11:16.809+01:00<div style="text-align: justify;"><span style="background-color: white; color: #1c1e21; font-family: Helvetica, Arial, sans-serif; font-size: 14px;">O vizinho mudou. Estendo as pernas ao sol para Oeste. Não há brisa. Há vento a cansar os canaviais, o chapéu de sol geme e retiro os chinelos do sol. São pretos e sei que me aquecerão as solas dos pés em fornalha quando os voltar a calçar. São 16.54. Não posso deixar passar a hora do anti-inflamatório, lá para as 17.30, quando o sol tiver descido e o meu corpo for todo iluminado pelo astro-rei, não é o caso agora, e também não é importante porque agora mesmo sopra um vento ma</span><span class="text_exposed_show" style="background-color: white; color: #1c1e21; display: inline; font-family: Helvetica, Arial, sans-serif; font-size: 14px;">is forte e tocam as badaladas do sino da aldeia dois minutos antes do esperado e ninguém quer saber de corpos ao sol, vento e Oeste. Se pudesse enterrava os pés na relva e mexia os dedos alternadamente, tão infantil e inesperado como quando saio a porta e respiro as noites frescas que me açoitam os braços e bebo o silêncio das noites mudas. Que me terá dado para passar a apreciar a morrinha das noites de nevoeiro e o açoite fresco nos braços? Mudei. Se calhar. Talvez mais do que o vizinho que largou Lady in Red e agora ouve Ed Sheeran e a Cardi B com outro caramelo qualquer. Antes assim. Mudámos todos e mudamos sempre, que os deuses nos permitam a mudança.</span></div><span class="text_exposed_show" style="background-color: white; color: #1c1e21; display: inline; font-family: Helvetica, Arial, sans-serif; font-size: 14px;"><div style="text-align: justify;">São 17.14 e não me posso esquecer do anti-inflamatório.</div></span>Leonorhttp://www.blogger.com/profile/09588327057255453264noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-9057395675663318583.post-7246269799794791052020-07-18T11:12:00.001+01:002020-08-03T11:13:16.478+01:00Domingos assim<span style="background-color: white; color: #1c1e21; font-family: Helvetica, Arial, sans-serif; font-size: 14px;">Hoje ninguém cortou relva, aparou as sebes ou podou o canavial. Hoje nem o Lady in Red tocou a altos berros nas colunas do vizinho umas casas abaixo perto do da sebe e também não houve rock delambido que nos atirava para os corpos inexperientes nas décadas em que a televisão era a preto e branco. O sino da aldeia tocou agora, sem ambição de carrilhões da vila, deram-lhe dois açoites bem dados, grunhiu duas badaladas e votou-se ao silêncio. A araucária ergue-se-me hirta entre </span><span class="text_exposed_show" style="background-color: white; color: #1c1e21; display: inline; font-family: Helvetica, Arial, sans-serif; font-size: 14px;">as pernas flectidas e também há uma chaminé encimada com um triângulo. Não houvesse pássaros e talvez fosse isto o silêncio. Não fosse isto o Oeste e o sol continuaria brilhante de azuis estridentes. Não fosse eu eu e isto era só uma mulher deitada numa espreguiçadeira numa tarde de sábado a ver chegar a neblina. Se não te desse para escrever baboseiras era o que fazias de melhor, ó.</span>Leonorhttp://www.blogger.com/profile/09588327057255453264noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-9057395675663318583.post-87774349467618736962020-07-16T11:13:00.000+01:002020-08-03T11:18:38.295+01:00Espera<div style="text-align: justify;"><span style="background-color: white; color: #1c1e21; font-family: Helvetica, Arial, sans-serif; font-size: 14px;">Sento-me no lambril com os pés nus na relva à espera da brisa. Espero. Talvez seja ela que vem lá ao longe, ouvi-a passear-se nos pinheiros ou talvez no canavial, ainda não aprendi a linguagem das árvores, talvez seja. O corpo denuncia o calor, abandonado e livre das amarras do dever do decoro social. Estendo as pernas nuas e interrompo o silêncio com o restolhar da relva. Há um cão de ladrar agudo que reclama lá longe. Se calhar, podia estender-me na espreguiçadeira e sonha</span><span class="text_exposed_show" style="background-color: white; color: #1c1e21; display: inline; font-family: Helvetica, Arial, sans-serif; font-size: 14px;">r os sonhos perdidos ou captar vontades e espíritos que a noite larga quando apaga o dia, enquanto espero. Soubesse eu de estrelas e planetas e saberia o que é aquilo que brilha sobre a copa dos pinheiros, se tivesse óculos saberia se é uma estrela ou um planeta mas a noite quer-se terna e ver de mais não ajuda ao apaziguar das almas. Sem lentes nem óculos sei do aroma da humidade sobre a relva e sobre as hidrângeas, sei do estio que se abateu sobre o mato seco, sei da hortelã. Espero. Não vem. Quase parece um amor perdido. Não espero mais. Boa noite. Que noite boa. Cala-te, cão.</span></div>Leonorhttp://www.blogger.com/profile/09588327057255453264noreply@blogger.com0