12 May 2020

Papá

Por esta hora já terias refilado contra a insistência nas comemorações do 25 de abril, nas do primeiro de maio na rua, e talvez do Avante, que ideia peregrina, dirias, mas poderias muito bem ter feito o contrário. Eras mestre no espírito de contradição que me levava ao limite tantas vezes. Terias refilado bastante. Isso sei. Já de Fátima dirias o previsível, tu e Fátima numa só frase pouco tinham de católico, muito menos de cordato e herdei de ti a total ausência de fé mariana. Hoje, num dia sem pandemia, ou apesar dela, terias entrado tão feliz cá em casa como sempre fizeste, nunca te vi aborrecido aqui. Terias admirado o azevinho, e a glicínia que se reverbera em exuberantes humores lilazes, em cascata sobre a pérgula. Depois entravas na casa perfumada com o leite-creme acabado de queimar e na nossa eucaristia brindaríamos com um Dão encorpado, o mesmo que procuro quando estou à lareira no inverno, comigo em mim, e te procuro e celebro com o crepitar da lenha, o aroma apaziguante do madeiro, a infância que recriamos feliz quando ninguém era morto, e havia farturas na feira e míscaros no outono. Hoje é o teu dia. Sem leite-creme nem Dão. Não me chamaste filhota nem Nocas. O azevinho continua enorme, e vi o primeiro pirilampo quando fui respirar noite. Parabéns, Papá. Da tua filhota.

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