26 Sept 2020

 Vou dormir, penso, dizem os entendidos que estes anúncios servem para autorregularmos o  comportamento, e assim faço, convenço-me de que vou dormir, pode ser que se me afastem inquietações e possa repousar o espírito como abandono os sapatos quando chego a casa.

Assim farei, largo-as ao despir-me e dispo-me delas, e do mundo. Amanhã posso fazer uma máquina de roupa de negritudes e inquietações, expressão tão tola como fazer febre, e deixá-las na centrifugação mais forte, com sorte encolhem para tamanhos insignificantes. Não ladram cães hoje. Não há vento nem vozes.Tanto silêncio que me aninharei nele, despojada de dias e inquietudes, farei como os gatos enrolada em mim mesma a dormir-me-ei numa ode aos pronomes reflexos.

24 Sept 2020

People are strange

Uma mulher tem um dia preenchido, abandona as aulas e a escola, e esperam-na compras ridículas de supermercado: não havia detergente para a louça. Adentra o dito estabelecimento que evita tanto como janeiro, repara que há vinhos em promoção, compra uns sprays desinfetantes, cápsulas para café, que acabe o mundo menos café e pores-do-sol, deixa que baixe sobre ela o deusnossosenhor dos jantares frugais, uma salada iceberg coroada com um abacate em meias-luas, para a seguir ceder a Diónisos e Lúcifer e comprar um chouriço de porco preto cheio de gordura e inomináveis substâncias malévolas e pecadoras, que Apolo me perdoe, um pedaço de queijo amanteigado da Terceira que casa na perfeição com o Picaroto que repousa paciente no frigorífico, e manda às urtigas a intenção da frugalidade, adia-la-á para dias também eles frugais e desinteressantes. Falta-lhe álcool para castigar o chouriço e o ver a retorcer-se na chama excitada pela gordura. Volta quase ao ponto de partida, ao corredor de tampões de ouvidos e preservativos e  procura álcool, simplesmente álcool como a Maria do folhetim da rádio, benzadeus, a esta hora estará a fazer tijolo, pobre alma sofredora. Aguarda-a uma exposição abundante de álcool, mas gel. Ele há de vários tamanhos, espessuras e texturas diversas, aromas e fins distintos. Há de tudo. Um escaparate inteiro que àquela hora me confundia e desesperava. Faltava apenas álcool a 96°, daquele bravo que arde em força. Voltar para trás era refazer planos. Não depois de ter o Assobio no carrinho e uma terrível vontade de conforto. Vi-me pois na contingência de usar álcool-gel a cheirar a lavanda, o rosmaninho fica quase sempre bem com a carne, e isto porque não havia com cheiro a tomilho, o casamento perfeito. Os Doors é que a sabiam toda: 'Strange Days'.

18 Sept 2020

Outono-Inverno

 Os primeiros dias de chuva trazem o prenúncio do fim, a inviabilidade de pernas ao sol e pés descalços, de correr para apanhar pores-do-sol fúlvios e superlativos. Lá fora a natureza impacienta-se ao som do vento e da chuva, a cadência das pingueiras é o silêncio desta manhã de outono precoce. A seu tempo chegarão marmelos e diospiros, castanhas e cachecóis, a relva ficará mais verde, as gatas enrolar-se-ão em sonos longos e beatíficos e eu voltarei a invejá-las na liberdade e nos caprichos. Há-de haver lareira e um copo de tinto no remanso de afazeres arrumados, eu na minha ostra fechada ao mundo, perfumada de preticor e maresias. Troveja agora. Somos a sucessão dos dias que escolhemos e a soma de estações passadas. Sou outono hoje.

12 Sept 2020

Silêncios e ausências

 Diz-se que não há nada mais certo do que o fim da linha, e que a morte faz parte da vida. Se assim fosse aceitá-la-íamos com serenidade e a ingenuidade de que nos fazemos estrelas, e que um dia nos encontraremos lá nesse poético inexistente local etério. Arranjamos panaceias para a ausência que nos esmaga e corrói por dentro, não sofreu, chegou a sua hora ou não sofre mais. E nestes momentos de terrível solidão, a morte traz-nos sempre solidão, somos nós sozinhos a braços com o vazio óbvio de estar e já não estar, como dizia Saramago, encontramos conforto mesmo momentâneo de quem nos acompanha e está, a dicotomia ausência/presença num talvez paradoxo vida e morte. Presença na ausência e vida na morte. As palavras confortam, um telefonema, uma mensagem relembram que alguém se lembrou de nós mas não há nada que substitua um abraço e a presença física. Perduram sempre. Sinto ainda os abraços e a presença de quem me acompanhou na partida do meu pai, de quem me disse 'estou aqui' em momentos de escuridão. Este malfadado ano de 2020 levou as mães de amigos meus. Primeiro o telefonema em lágrimas, as minhas também, depois o meu telefonema para substituir o abraço, e hoje mais uma vez, abraços pelo telefone, não sei bem como se faz, dizem-se coisas desajeitadas, soltam-se palavras desengonçadas,  quando nos apetece ir ter com os amigos e estar lá, estar presente, dar um abraço, dois, chorarmos juntos se chorar nos apetecer ou apenas estar e partilhar silêncios. Não fiz nada disso. Fiquei quieta em casa, a tentar que o meu abraço chegasse na distância, e só há tristeza, e uma enorme impotência. Há quem ache que o Covid é uma oportunidade de balelas alternativas de crescimento e mudança, do universo a rejenerar-se e a natureza armada em Greta a dar-nos uma reprimenda punitiva pelo desleixo e incúria. Só lhe encontro solidão, tristeza, miséria e dispenso as lições de moral. Deve-me todos os momentos em que não pude estar presente e abraçar os meus amigos, e isso não é crescimento nem oportunidade. É uma imensa devastação. Um dia dar-lhes-ei estes abraços, sei, chegarão sempre tarde, não obstante.

9 Sept 2020

 Não sei muito bem se isto que tenho é sono ou o dia a escorrer-se-me corpo abaixo como a toalha estendida ao vento, as almofadas açoitadas, mantas a largar gotas que marcam um compasso. Assim o dia. A noite segue descendente sobre e sob o corpo abandonado sem pudor ou recato. Coxas e pernas sofá afora, pedaços a fugir às amarras.  Talvez seja só sono, ou cansaço. Há grilos insistentes, um cão a ladrar longe de fala estridente e eu a sentir o dia partir. Se calhar tenho outras coisas, silêncios instalados que me trazem calada ou maresias íntimas recolhidas como a mulher recolhia vontades e amanhã não comerei pão no jejum pudico de não adentrar outros. Estico as pernas e contemplo as unhas pintadas de vermelho-framboesa, alinhadas com as das mãos, e as pernas beijadas pelo zénite, tudo efémero e insignificante. Podiam ficar assim sempre, sou mais  feliz amada pelo sol mas o outono trará recolhimento e pudores, e já não apanharei maresias. Que interessa o meu vermelho-framboesa, o cansaço e o dia a deslizar-se-me? Tanto quanto o cão de ladrar estridente, os pudores de outono, as pernas beijadas pelo zénite temperadas de maresia ou estas palavras. Coisa nenhuma.