16 Jan 2020

Estás longe. Se estender o braço não te sinto, se te procurar com a mão nada encontro, se esticar o corpo ondulado como serpente, sinto o corpo, o meu, a deslizar na suavidade e no silêncio da noite que se pôs, a lareira crepita, as gatas dormem, de ti não há rasto. Sacudo as migalhas dos dias na toalha da semana, solto os cachos de medusa, virás assim, na languidez do corpo abandonado? Se me souberes tranquila, ser-te-à mais fácil? Se me ouvisses a respiração sincopada, meu eterno amor fugidio, talvez assim viesses. A mulher subitamente doce e submissa que te procura e te precisa, quero-te tanto, meu amor, preciso-te tudo. Sem ti não há luz nem sol. Sem ti os dias cinzentos são só cinzentos e as auréolas inferiores dos meus olhos o traço inequívoco da tua ausência. Trago-a marcada no corpo, no rosto que despenca, no caminhar arrastado, esta tez de vela cândida. Preciso-te, nem sempre te quero, mas preciso-te como os poentes de outono. E agora, daqui a pouco talvez, podias aproximar-te como os gatos espreitam o dia e cheiram a noite. Devagar, meu amor, devagar. Espero-te, meu sono vadio.

#crónicasdosono

11 Jan 2020

Cheirar maçãs, cheirar pêssegos, cheirar pão, cheirar vinho, cheirar a lenha a arder, cheirar a chuva acabada de chover, cheirar as primeiras chuvas de outono, cheirar as chuvas de março, cheirar o trópico quando a porta do avião se abre e há noite e calor e clorofila, cheirar o Norte nas cidades, cheirar o verão e a primavera, cheirar os livros acabados de imprimir, cheirar o café acabado de fazer pela manhã, cheirar a nespereira em flor, o jasmim, a hortelã, a maresia, o salgadiço no corpo, o corpo, cheirar, cheirar tudo e usar o olfacto como a bússola dos dias, o norte e o sul de mim. Cheirar o sol no pêlo da gata 'cheiras a sol, meu amor lindo'. Cheirar a sol, cheirar a lua.