15 Aug 2020

Quanto

Às vezes pergunto-me quanto tempo. Quanto tempo levamos a ser nós, em quanto tempo se cura um amor falhado, quanto tempo durará até que as estações se tornem unas, e possamos admirar outono, inverno, primavera e verão com igual encanto. Leva tempo. Quanto tempo nos falta ainda. Que tempo temos de sobra para dizer tudo, amar tudo. Quanto tempo nos sobeja para beber a vida de champagne sablé, abrir a boca em taça e sorver o suco das ostras cruas do salgadiço e maresia de nortadas pretéritas e futuras de que sou feita. Quanto tempo? Quanto tempo leva a aprender o silêncio e a saboreá-lo como um pêssego maduro a quem pomos os lábios rotundos, lúbricos. Quanto tempo precisamos para dizer não quero, não vou, não faço. Quanto tempo é preciso para dizer quero, reflexo também. Quanto tempo ainda para oxímoros, aliterações e eufemismos, e palavras.

São dezassete e dezasseis e o vizinho não sabe quanto tempo ainda. Quanto tempo vai agredir os meus ouvidos com uma rebarbadora ou uma serra elétrica ou uma aparafusadora, pode muito bem ser que de bricolage só sei ver a horizontalidade perfeita, nem um milímetro a mais ou a menos, quase como a intuição precisa que nem a balança de pratos na mercearia morta na rua da minha mãe, e eu criança. Talvez seja isso que ele procura a um sábado à tarde enquanto tento bronzear as pernas, apaziguar-me de tudo, e abocanhar o silêncio. Não sei quanto tempo. Não se sabe ainda. 

Calou-se. Alguém varre agora os despojos em ritmo cadente. Não se sabe quanto tempo. 

7 Aug 2020

Intermitências do sono

Pudesse eu lembrar-me como te reencontrei e talvez soubesse de abraços longos e envolventes ou beijos furtivos que se tornaram longos e quentes como a brisa nocturna de verões cálidos. E presentes. Não sei quantos anos de ausência. Dez, quinze, sempre. O epitáfio que quase te escrevi, o anúncio aflito à tua procura, e as partilhas que hoje nada há além de likes e partilhas. Nao estavas nem eras. Fosse eu outra coisa que não eu, e pouco me interessaria porque voltaste. Se calhar, o jeito doce de te chamar, vem, meu amor, vem agora, a mulher convenientemente  submissa, astuta e matreira  para atrair o objecto desejado, ou o ímpeto de te sacudir nas horas impróprias, és feito de incógnitas e surpresas. Tantas que voltaste sem mais. E agora, neste mesmo momento em que arrumo o dia e solto o corpo estás perto e somos um até as palavras me faltarem e  restará o silêncio e nós. Fica comigo. Preciso-te, meu sono adorado. Tanto.

2 Aug 2020

Fim de tarde e isso

O sol de fim de tarde tem a brandura de um amor ternurento. Aquece-me o braço e a perna direita enquanto me sento no degrau morno de um dia de verão incerto, o mais certo dia de verão a oeste. Sopra vento de baixo e que pelos pontos cardeais por onde me oriento seria de oeste, vem do mar, e o mar está a oeste mas forte e impiedoso só pode ser do norte, não tem meias palavras nem cerimónias, poucas concessões e a determinação irritante dos teimosos solitários. Faço sombra à Julieta, sentada de pernas escachadas sem pudor e pés nus no chão. A roupa estendida ondula ao sabor do vento e eu vejo as várias mulheres no macacão preto, no vermelho, no de flores brancas e verdes com um centro amarelo, sou menos eu no vestido longo e fluido de flores pequenas que desencantei na memória do guarda-roupa. Se calhar quero ser o que já não sou mas o vestido serve-me, assenta no peito na perfeição. Talvez não seja assim tão outra. Agora que me virei tenho o sol de frente e uma revoada de vento açoita os pedaços com que cubro o corpo, até as intimidades resguardadas se agitam levemente, e o perfume do detergente em promoção no supermercado augura a sensualidade dos lençóis lavados e secos ao vento e ao sol. Os estendais contam tantas estórias e desvendam outras tantas intimidades, se os observamos atentamente. Um olhar indiscreto sobre quem somos por baixo do que aparentamos ser, de gravatas e composturas, blusas imaculadas de ferros prendados. Velha, um dia, podia sentar me numa cadeira de abrir ou de fechar, é sempre tudo uma questão de perspectiva, e contar os outros com as mãos cruzadas sobre a barriga rotunda, se calhar nessa altura já teria barriga, mas os escritores não se revelam em cadeiras de abrir, agora está frio, eu tenho de apanhar a roupa e também nunca serei escritora.