29 Jan 2019

Quitério, Violeta, Viviano

O Quitério senta-se sempre num lugar da frente, traz consigo a prontidão das gentes do Norte ao falar, faz beicinho quando está aborrecido e detém-se em silêncios longos quando algo o chateia, A Violeta senta-se não muito longe do Quitério. É suave no trato, elegante na expressão, solta palavras sempre a preceito e sempre assertivas, condizentes com a figura magra e esguia de cabelos longos e gosto sóbrio. Quando o Quitério se deslocou ao quadro numa das vezes,  a Violeta, esperando o momento certo, disse, a meio tom 'Quitério, devias pedir desculpa ao professor do Sentido da Vida'. O Quitério justificou-se, reclamando que estava aborrecido, que o professor foi insistente e outras desculpas aparentemente infundadas porque a Caramelina do outro lado da carteira corroborou a opinião da Violeta 'também acho, Quitério.'
Hoje o Viviano pediu-me a opinião sobre uns ténis. O Quitério reclamou que não eram ténis, eram sapatilhas, eu reclamei que eram ténis, a Juzelina reclamou que o Viviano lhes pedia opinião para tudo, até para os boxers, e eu defendi o Viviano que entretanto me desfolhava ténis de várias cores e feitios no ecrã brilhante e que ganhavam ainda mais cor nos seus olhos. O Viviano não reclamou de nada. Quando afirmei que só usava ténis para o ginásio, o Quitério surpreendeu-se ' a setora vai ao ginásio? Vai ficar bicho!' A Violeta acorreu em sua salvação 'Quitério, não podes falar assim à setora'. O Quitério argumentou o de sempre e questionou-a 'então e o que é que eu digo?' Dizes, disse a maternal Violeta, que 'a setora vai ficar tonificada', tudo isto rematado com um sorriso. O Quitério obedeceu, tentando acomodar os eufemismos ao lado das verbalizações ásperas, uma empreitada para vários anos lectivos ao que parece. Mais tarde a Violeta voltaria a questionar 'Quitério, como é que se diz?' O Quitério respondeu no seu novo e recauchutado linguajar ' a setora vai ficar tonificada' e a  Violeta reafirmou a sua fé na conversão do Quitério. A aula começou e fomos todos felizes mais uma vez. Hoje até o Francelino se riu.

25 Jan 2019

Credo, Né, és tão parvo. Que raio de mania essa havia de se te meter na cabeça. Se não fosse janeiro, terias querido partir na mesma? Se fosse fevereiro quando os dias alongam, se fosse março quando o ar se perfuma? Não podias ter antes bebido um copo e pensar que tudo passa? Que parvoíce, Né. O resto tu sabes. A Sofia ficou uma mulher linda. O Benfica está uma merda. Fui ver o Ozzy em julho, imagina. De vez em quando recolho-me em eucaristias íntimas de Dão em tua honra, eu, tu e o tio, um gole e somos nós na Beira, no granito e no frio, cheira a sonhos e a lenha, somos nós na luz bruxuleante que guardo em mim. Tu sabias que nem tudo passa. A tua ausência não passa. Que parvo, Né.

24 Jan 2019


Quando chegávamos ao Marienplatz, a búlgara proclamava-se oficialmente cansada, não sem antes me estender os sacos de compras e me nomear sua guardiã. Soltava um profundo 'ich kann nicht mehr', arrastava-se como todas nós após um dia de trabalho intenso em língua estrangeira e partia para as compras soltando o lamento que se dissiparia nos céus bávaros. Voltaria no dia seguinte pela mesma hora e eu transformar-me-ia uma vez mais na guardiã dos seus pequenos prazeres consumistas. Os lamentos podem adquirir hábitos se os soltarmos à mesma hora e surgirão inconvenientes e insistentes como os homens chatos. A búlgara não sabia disso, também não sei se sabia de homens chatos, e a partir do quarto dia da primeira semana largava-os como a balões coloridos no meio da praça quando tocava o carrilhão. Aos lamentos, não aos homens, bem entendido e por isso voltavam todos os dias sensivelmente à mesma hora. Quase como os homens chatos.
A búlgara regressou-me um destes dias quando me digladiava com o meu cansaço e dei por mim, enquanto metia a terceira no carro e me largava estrada fora, a pensar em língua estrangeira: ich kann nicht mehr. Tinha um cansaço pesado como chumbo, instalado no sítio onde me nascem as cores. Tenho medo dos cansaços, tiram-me discernimento e dão-me fome. O discernimento faz-me muita falta, é com ele que me guio quando quase tudo perece entre atas e relatórios, quezílias e merdílias que não existe mas rima com quezílias. Ontem foi um desses dias de 'ich kann nicht mehr' sem a búlgara nem homens chatos, sem sequer tempo para lamentos, mas que me deixou esta fome imoral e pecaminosa. Já não posso mais.

11 Jan 2019

Gratidão


Diz que hoje é o dia da gratidão. Não sei de onde vem, quem instituiu mas sei que a gratidão é das coisas que mais prezo. Estar grato é reconhecer o que de seu nos deram e que na verdade não precisavam de dar. A generosidade genuína de nos darmos ao outro.Estou grata muitas vezes e sempre. Quando os alunos me retornam e me abraçam, quando me pedem desculpa por alguma incorreção, quando me agradecem pelo ano letivo, quando se percebe que fizemos a diferença, mesmo pequena e só reconhecível nestes momentos. E depois, por muito do resto, pelas risadas que partilho com a minha mãe, pela dádiva de quem sou, pela resiliência, por me aturarem os maus humores, por partilhar lugares e momentos, pelas mãos dadas e silêncios cúmplices, pelos copos partilhados em tantos ocasos, pelas pessoas que a vida me deu e me devolve. Pelos pores-do-sol e pela lareira, pelos gorros numa cidade gélida, pela intimidade de cortinas fechadas ao mundo, pelos mares e marés, pelos beijos e abraços, pelo crepúsculo de inverno. Pelas palavras. Em todas as línguas. Tanto, afinal

6 Jan 2019

Araucária


Em casa da minha avó havia uma. Era tão alta que chegava ao segundo andar e dava-nos as boas-vindas quando lá íamos pelo Natal, uma ou outra vez cobriu-se de neve, ocasionalmente pela Páscoa quando o compasso pascal obrigava a que as mamas da estatueta cinzenta fossem cobertas para não insultar o vigário, e no verão, quando as mamas da estatueta eram livres e tão jovens e firmes como na Páscoa, e não havia neve. Assim era a araucária. Hoje quando o sol poente me chamou da janela da cozinha vi uma araucária. O contraste escuro em escadinha contra o céu em listas horizontais coloridas. Nunca antes havia visto a araucária e não sei porque havia de a ver exactamente hoje neste jejum abstinente de fotografias a que este bicho de onde vos escrevo me impôs. Araucária ao poente na hora em que se escondem todos os males e se abrigam inquietudes, que bela fotografia, não ficou?

4 Jan 2019

(Des)Foco


Não me surpreendi porque havia um vidro de permeio e a ideia de ver o mundo lá em baixo meio desfocado na vertigem de janeiro, o meu odiado janeiro, pareceu-me ilustrativa do meu estado de alma lá pelas 10.30 de ontem. Pelas 17.10 de ontem também o sol brilhava no ocaso através da janela do ginásio, nesse momento a vertigem de janeiro tinha-se dissipado ou afastado, havia um pôr-do-sol exuberante que me acenava no horizonte e quando lhe apontei o telemóvel tinha uma imagem sem contorno, uma imensa esfera rubra que não se deixava ver com nitidez. Numa altura de focos e focados e focadas, o meu telemóvel perdeu a capacidade de focar e de se focar, ao contrário, primeiro focar-se e depois focar. Esta é pois a melhor altura para estar ao meu lado: não há tentações de fotografar quase tudo o que vejo, dependendo do sítio onde vejo, e quando quero ver, quero ver tudo. Um par de olhos e um par de lentes de contacto HD presbiopia não me chegam. O japonês que vive dentro de mim e com quem tenho contendas frequentes recolheu-se, parece-me estar sentado ao lado da minha solidão, tenho um desconforto do lado direito quem desce que só pode ser isso. A minha própria mãe, no seu jeito muito próprio, afirmou ao saber do sucedido 'ah estás desgraçada agora' e só não se riu de mim porque andava às bolas coloridas ou a colher butternut squash, que, como se sabe, são mais importantes do que um telemóvel desgovernado e demente. E é isto. A partir de agora por tempo indeterminado só haverá palavras, o meu Instagram estará a viver de throwbacks, que são como a feira da Malveira, só à quinta-feira e eu apenas de olhares. Queiram os deuses que eu não perca a capacidade de focar.