O Quitério senta-se sempre num
lugar da frente, traz consigo a prontidão das gentes do Norte ao falar, faz
beicinho quando está aborrecido e detém-se em silêncios longos quando algo o
chateia, A Violeta senta-se não muito longe do Quitério. É suave no trato,
elegante na expressão, solta palavras sempre a preceito e sempre assertivas,
condizentes com a figura magra e esguia de cabelos longos e gosto sóbrio.
Quando o Quitério se deslocou ao quadro numa das vezes, a Violeta, esperando o momento certo, disse, a
meio tom 'Quitério, devias pedir desculpa ao professor do Sentido da Vida'. O
Quitério justificou-se, reclamando que estava aborrecido, que o professor foi
insistente e outras desculpas aparentemente infundadas porque a Caramelina do
outro lado da carteira corroborou a opinião da Violeta 'também acho, Quitério.'
Hoje o Viviano pediu-me a opinião
sobre uns ténis. O Quitério reclamou que não eram ténis, eram sapatilhas, eu
reclamei que eram ténis, a Juzelina reclamou que o Viviano lhes pedia opinião
para tudo, até para os boxers, e eu defendi o Viviano que entretanto me
desfolhava ténis de várias cores e feitios no ecrã brilhante e que ganhavam
ainda mais cor nos seus olhos. O Viviano não reclamou de nada. Quando afirmei
que só usava ténis para o ginásio, o Quitério surpreendeu-se ' a setora vai ao
ginásio? Vai ficar bicho!' A Violeta acorreu em sua salvação 'Quitério, não
podes falar assim à setora'. O Quitério argumentou o de sempre e questionou-a
'então e o que é que eu digo?' Dizes, disse a maternal Violeta, que 'a setora
vai ficar tonificada', tudo isto rematado com um sorriso. O Quitério obedeceu,
tentando acomodar os eufemismos ao lado das verbalizações ásperas, uma
empreitada para vários anos lectivos ao que parece. Mais tarde a Violeta
voltaria a questionar 'Quitério, como é que se diz?' O Quitério respondeu no
seu novo e recauchutado linguajar ' a setora vai ficar tonificada' e a Violeta reafirmou a sua fé na conversão do
Quitério. A aula começou e fomos todos felizes mais uma vez. Hoje até o Francelino
se riu.29 Jan 2019
25 Jan 2019
Né
Credo, Né, és tão parvo. Que raio de mania essa havia de se te meter na cabeça. Se não fosse janeiro, terias querido partir na mesma? Se fosse fevereiro quando os dias alongam, se fosse março quando o ar se perfuma? Não podias ter antes bebido um copo e pensar que tudo passa? Que parvoíce, Né. O resto tu sabes. A Sofia ficou uma mulher linda. O Benfica está uma merda. Fui ver o Ozzy em julho, imagina. De vez em quando recolho-me em eucaristias íntimas de Dão em tua honra, eu, tu e o tio, um gole e somos nós na Beira, no granito e no frio, cheira a sonhos e a lenha, somos nós na luz bruxuleante que guardo em mim. Tu sabias que nem tudo passa. A tua ausência não passa. Que parvo, Né.
24 Jan 2019
Quando chegávamos ao Marienplatz,
a búlgara proclamava-se oficialmente cansada, não sem antes me estender os
sacos de compras e me nomear sua guardiã. Soltava um profundo 'ich kann nicht
mehr', arrastava-se como todas nós após um dia de trabalho intenso em língua
estrangeira e partia para as compras soltando o lamento que se dissiparia nos
céus bávaros. Voltaria no dia seguinte pela mesma hora e eu transformar-me-ia
uma vez mais na guardiã dos seus pequenos prazeres consumistas. Os lamentos
podem adquirir hábitos se os soltarmos à mesma hora e surgirão inconvenientes e
insistentes como os homens chatos. A búlgara não sabia disso, também não sei se
sabia de homens chatos, e a partir do quarto dia da primeira semana largava-os
como a balões coloridos no meio da praça quando tocava o carrilhão. Aos
lamentos, não aos homens, bem entendido e por isso voltavam todos os dias
sensivelmente à mesma hora. Quase como os homens chatos.
A búlgara regressou-me um destes
dias quando me digladiava com o meu cansaço e dei por mim, enquanto metia a
terceira no carro e me largava estrada fora, a pensar em língua estrangeira:
ich kann nicht mehr. Tinha um cansaço pesado como chumbo, instalado no sítio
onde me nascem as cores. Tenho medo dos cansaços, tiram-me discernimento e
dão-me fome. O discernimento faz-me muita falta, é com ele que me guio quando
quase tudo perece entre atas e relatórios, quezílias e merdílias que não existe
mas rima com quezílias. Ontem foi um desses dias de 'ich kann nicht mehr' sem a
búlgara nem homens chatos, sem sequer tempo para lamentos, mas que me deixou
esta fome imoral e pecaminosa. Já não posso mais.
11 Jan 2019
Gratidão
Diz que hoje é o dia da gratidão.
Não sei de onde vem, quem instituiu mas sei que a gratidão é das coisas que
mais prezo. Estar grato é reconhecer o que de seu nos deram e que na verdade
não precisavam de dar. A generosidade genuína de nos darmos ao outro.Estou
grata muitas vezes e sempre. Quando os alunos me retornam e me abraçam, quando
me pedem desculpa por alguma incorreção, quando me agradecem pelo ano letivo,
quando se percebe que fizemos a diferença, mesmo pequena e só reconhecível
nestes momentos. E depois, por muito do resto, pelas risadas que partilho com a
minha mãe, pela dádiva de quem sou, pela resiliência, por me aturarem os maus
humores, por partilhar lugares e momentos, pelas mãos dadas e silêncios
cúmplices, pelos copos partilhados em tantos ocasos, pelas pessoas que a vida
me deu e me devolve. Pelos pores-do-sol e pela lareira, pelos gorros numa
cidade gélida, pela intimidade de cortinas fechadas ao mundo, pelos mares e
marés, pelos beijos e abraços, pelo crepúsculo de inverno. Pelas palavras. Em
todas as línguas. Tanto, afinal
6 Jan 2019
Araucária
Em casa da minha avó havia uma.
Era tão alta que chegava ao segundo andar e dava-nos as boas-vindas quando lá
íamos pelo Natal, uma ou outra vez cobriu-se de neve, ocasionalmente pela
Páscoa quando o compasso pascal obrigava a que as mamas da estatueta cinzenta
fossem cobertas para não insultar o vigário, e no verão, quando as mamas da
estatueta eram livres e tão jovens e firmes como na Páscoa, e não havia neve.
Assim era a araucária. Hoje quando o sol poente me chamou da janela da cozinha
vi uma araucária. O contraste escuro em escadinha contra o céu em listas
horizontais coloridas. Nunca antes havia visto a araucária e não sei porque
havia de a ver exactamente hoje neste jejum abstinente de fotografias a que
este bicho de onde vos escrevo me impôs. Araucária ao poente na hora em que se
escondem todos os males e se abrigam inquietudes, que bela fotografia, não
ficou?
4 Jan 2019
(Des)Foco
Não me surpreendi porque havia um
vidro de permeio e a ideia de ver o mundo lá em baixo meio desfocado na
vertigem de janeiro, o meu odiado janeiro, pareceu-me ilustrativa do meu estado
de alma lá pelas 10.30 de ontem. Pelas 17.10 de ontem também o sol brilhava no
ocaso através da janela do ginásio, nesse momento a vertigem de janeiro
tinha-se dissipado ou afastado, havia um pôr-do-sol exuberante que me acenava
no horizonte e quando lhe apontei o telemóvel tinha uma imagem sem contorno,
uma imensa esfera rubra que não se deixava ver com nitidez. Numa altura de
focos e focados e focadas, o meu telemóvel perdeu a capacidade de focar e de se
focar, ao contrário, primeiro focar-se e depois focar. Esta é pois a melhor
altura para estar ao meu lado: não há tentações de fotografar quase tudo o que
vejo, dependendo do sítio onde vejo, e quando quero ver, quero ver tudo. Um par
de olhos e um par de lentes de contacto HD presbiopia não me chegam. O japonês
que vive dentro de mim e com quem tenho contendas frequentes recolheu-se,
parece-me estar sentado ao lado da minha solidão, tenho um desconforto do lado
direito quem desce que só pode ser isso. A minha própria mãe, no seu jeito
muito próprio, afirmou ao saber do sucedido 'ah estás desgraçada agora' e só
não se riu de mim porque andava às bolas coloridas ou a colher butternut
squash, que, como se sabe, são mais importantes do que um telemóvel
desgovernado e demente. E é isto. A partir de agora por tempo indeterminado só
haverá palavras, o meu Instagram estará a viver de throwbacks, que são como a
feira da Malveira, só à quinta-feira e eu apenas de olhares. Queiram os deuses
que eu não perca a capacidade de focar.
Subscribe to:
Posts (Atom)