Eram isto 8.30. São sempre 8.30
quando a vida de professora começa mas não se sabe exactamente a que horas
acaba. A Claudina tinha muito sono e declarou entre o longo cabelo negro
derramado sobre a carteira e dois bocejos que tinha dormido mal. Diz que são as
notas, o teste de Física e Química que lhe tinha corrido mal e quando afirmei
que era apenas um teste, a Claudina repreendeu-me com o olhar e atirou-me sem
perdão que não era 'só' um teste. O Quitério chegou mais uma vez tarde e,
quando o questionei, reclamou que teve de ir levar o irmão ao infantário. A
esta hora, a Ricardina já estava agarrada ao telemóvel, e quando a repreendi,
justificou era a mãe que lhe estava a mandar uma mensagem. As mães mandam
muitas mensagens. Lá pelas 8.45 quando ia começar a aula, chegou o Firmino.
Vinha com as sobrancelhas em acento grave e agudo e nem pediu desculpa pelo
atraso. Quando questionado, atirou que tinha ido dormir a casa da mãe e que o
padrasto se atrasou, que não tinha culpa. E não tinha.Também estava aborrecido
com o namorado e sei isto porque se foi sentar do outro lado da sala com as
sobrancelhas em acentos e arremessou a mochila com o desprezo com que
arremessamos a vida quando nos trata mal. A vida estava a tratá-lo mal. A
Ricardina começou entretanto em prantos e pediu para sair. A ansiedade tinha
atacado outra vez, é animal que a corrói como bicho carpinteiro devora madeira,
e pedi à Germana para a acompanhar. Lá pelas nove quando lhes perguntei se
sabiam o que tinha acontecido ontem, não, ninguém sabia, fosse o que fosse que
tivesse acontecido ontem, quando lhes
perguntei se sabiam quem era Andy Warhol diz que não, não tinham ainda chegado
a essa página do manual, mas quando lhes
perguntei se havíamos de dividir por todos a visita de estudo do Marcelino que
não podia pagar disseram todos que sim, 'claro que sim, stora!', quando lhes
disse que não se resolviam assuntos ao estalo, nem divergências nem
discordâncias, olharam-me em silêncios cúmplices e eu anoiteci um bocadinho.
Depois o Marcelo contou que o pai só não tinha morrido naquele dia porque ele
se tinha posto entre ele e a mãe, o Danilo confessou que tinha visto o melhor
amigo morrer aos dez anos, a Libéria estava numa instituição por vontade
própria e andava chateada porque a tinham posto de castigo, o pai da Quitéria
tinha-lhe dado uma tareia quando descobriu que ela era namorada da Capitolina
e a Marcela pediu desculpa pelo cansaço
que a obrigava a cochilar na ombreira da janela quando víamos um filme mas estava
a trabalhar no supermercado, depois das aulas, para ajudar a mãe. No fim da
aula a Joanina chegou-se a mim e
declarou com um abraço 'para o ano vou ter muitas saudades suas'. Tocou
entretanto. Todos arrumaram pais, mães,
mágoas, notas, guardaram tristezas, ansiedades e padrastos na mochila e
saíram como se fossem felizes. É isto a vida de #estudante. É esta a minha vida
entre estudantes.
20 Apr 2019
11 Apr 2019
E nada mais havendo a tratar
Deu-se início à reunião
com todos os professores presentes. No primeiro ponto da ordem de trabalhos, o
Quitério não tem hábitos de trabalho e está muitas vezes distraído. Se calhar
tem TDA. A Francinela também está muitas vezes distraída e sonhadora, às vezes
reclama com a professora se esta lhe chama a atenção, e mexe-se, deve ter TDAH.
Aumentem-lhe ritalina e apliquem-lhe um PEI. O Tomásio não estudou nada, o
melhor é mandá-lo para a sala de estudo ou arranjar-lhe um apoio, se não
chegar, no terceiro período, aplica-se-lhe o apoio do apoio, para que se sinta
bem apoiado. O Guilhermino faltou todo o segundo período porque tem fobia
social e à escola, e à escola e social e a tudo, a professora de Inglês é de
opinião que ela própria também tem fobias superlativas a momentos destes, o
conselho de turma foi de opinião que o melhor é ela calar-se e deixar-se de
merdas ou terão de aplicar-lhe uma medida correctiva. Já ao Guilhermino é
melhor dar a nota, perdão, classificação do primeiro período, assim como assim,
é uma boa nota e os pais não reclamam: alínea xpto 'foi atribuída a
classificação do primeiro período porque sim e mais-que-também, blá, blá, blá.'
A Marinela ultrapassou o limite de faltas injustificadas às disciplinas de
sei-lá-o-quê, pelo que vai cumprir medidas de recuperação de aprendizagens
que também é uma coisa assim
sei-lá-o-quê .
No segundo ponto da
ordem de trabalhos, a Capitolina não estuda nada, e os paizinhos querem
resultados, a Marcela nem passa nada para o caderno e quer boas notas, o
Patrocínio não tem pré-requisitos, o Francisco não tem hábitos regulares e
sistemáticos de trabalho, o Miraculoso vem doutro país e não percebe nada, nem
se sabe o que está cá a fazer e na escola muito menos. Se não sabe por que é
que aparece e logo na escola?
No terceiro ponto da
ordem de trabalhos, os alunos não têm hábitos de trabalho regulares e
sistemáticos, o que se refle(c)te nas suas classificações. Os alunos devem
rever a sua atitude face à escola/percurso escolar (riscar o que não
interessa). Os alunos devem rever o seu percurso escolar. Os alunos revelam
falta de empenho. Os alunos devem colmatar as suas dificuldades com trabalho
sistemático. Os alunos devem todos já e em força mudar para línguas e
humanidades. Os alunos nunca serão capazes de fazer Física e Química / Biologia
/ Matemática (riscar o que não interessa, ah não, espera, só isto é que
interessa, não risca nada afinal)
No quarto ponto da
ordem de trabalhos, a professora de português reclama que eles não fazem nada,
nadinha, como hão-de fazer exame, a de Física e Química também, a de Geografia
idem, a de Biologia pois que sim, a de História está muito preocupada, e a de
Filosofia junta-se ao molho que só tem exame em anos bissextos ou alunos
bissextos mas não interessa e estão todos felizes neste coro de lamúrias e
indignações. Lá fora chove também, o que ajuda bastante.
No ponto quatro da
ordem de trabalhos, blá blá blá blá blá blá blá blá blá blá blá blá blá blá blá
blá blá blá blá blá blá blá blá blá blá.
No ponto cinco e seis, idem.
No ponto sete da ordem
de trabalhos, o conselho de turma considerou o aproveitamento da turma uma caca
e o comportamento um cocó.
Num ponto qualquer da ordem de trabalhos foram lançadas as
classificações dos alunos e ratificadas pelo conselho de turma.
E, nada mais havendo a tratar, deu-se por encerrada a
reunião, da qual se lavrou a presente ata.
9 Apr 2019
Cruzamentos
A mulher na rua perpendicular à minha hesita
quando a mulher que vem na direcção oposta à minha lhe dá passagem. A mulher à
esquerda é morena, tem o cabelo escuro escorrido e cara jovem e hesita. A
mulher que se veste de aparente cortesia à minha frente mas do outro lado da
estrada tem o cabelo curto de cor artificial e óculos. Espera uns cinco
segundos enquanto a outra continua na hesitação dos seus cabelos longos e
jovens, a hesitação é jovem? A mulher de cabelos curtos perde as estribeiras,
vá-se lá saber por que se perde as estribeiras na hesitação jovem, ou apenas
cautelosa de não se meter à estrada sem visibilidade. A mulher ergue os braços
e reclama veemente, um súbito ataque de fúria, gratuito e inexplicável. Avança
furiosa. A mulher hesitante dá-lhe passagem. Eu dou-lhe passagem e fico a
pensar na mulher irada, mesmo depois de a ver desaparecer impulsionada pela sua
própria ira. A quem se dirigia tanto despropósito? Espero que algum dia se encontre.
7 Apr 2019
Abraçar o silêncio
Há silêncios que doem e que
matam. Há silêncios que devem ser interrompidos, não tenho qualquer
dúvida, e há silêncios que amam e nos
amam. Nesta casa não há se não silêncio neste momento. As gatas dormem, o
almoço cozinha-se, e eu sentada na plenitude de nada fazer, descanso neste
silêncio que me abraça e beija, um manto tranquilo que desce sobre mim com
leveza de seda. Abraçar o silêncio é talvez das maiores aprendizagens da
maturidade. É preciso crescer muito, falar muito, ouvir outro tanto. Abraço-o
sem medos nesta manhã de domingo, preciso dele para respirar e amo-o quando me
entra pela porta no sol oblíquo de fim de tarde, outro dia que não hoje. Falar
silêncios. Aprendamo-lo.
5 Apr 2019
Gabriel
O Gabriel era do reviralho. O
Gabriel é do reviralho, porque uma vez do reviralho para sempre do reviralho, e
ao Gabriel nunca se conheceu conformismo. Vivia os seus dias entre livros e
orações e, até encontrar a mulher que o levaria a abandonar a vida dedicada às
artes sacras e celibatos, aparecia muito lá em casa, abraçado a um ramo de
grelos ou espigos que oferecia à minha mãe e que ela transformaria em
esparregado. Cozinhar é uma alquimia. Sabemos todos disso. O Gabriel sabia
disso também e talvez por isso chegar a desoras nunca foi um impedimento. A
magia não tem horas, a alquimia também não e o amor muito menos.
Nesses serões éramos todos
felizes, eu pré-adolescente, a minha mãe com o fulgor imparável tão típico, o
meu pai com a bonomia característica e até a minha avó conseguia esquecer a
filha e o marido colhidos precocemente pela senhora da foice. E havia livros e
esparregado de grelos.
O meu pai, o Gabriel, a minha mãe
e a mulher do Gabriel haviam de passar dias felizes, algumas décadas mais
tarde, a Sul, quando ninguém era doente e a plenitude se espelhava no Guadiana
que corria calmo como a vida, à sua frente. Quando um dia o Gabriel se começou
a queixar de um braço ninguém antecipou que a sentença estava marcada e quando
o médico anunciou sem pudor nem piedade que ele tinha a doença do Papa, o
Guadiana continuou a correr tão indiferente como a anunciação do médico, mas
todos nós anoitecemos um bocadinho. O Gabriel reparte os seus dias com a mais
abnegada mulher, pela qual em boa hora ele abandonou rezas e batinas, a que o
ama, cuida, e lhe mantém acesa a centelha cada vez mais frágil, não sabemos
quando se apagará, e eu, que não sei rezar, todos os dias lhe dedico preces
desajeitadas, inúteis e estéreis. Quanta impotência neste anoitecer.
Agora não somos todos felizes: a
minha avó partiu para junto da filha e do marido, o meu pai escapuliu-se-nos
quando o corpo o traiu, sempre preocupado com a doença do Papa do Gabriel, e o
Gabriel crepuscula-se sem que haja esperança de alvorada. Nunca mais apareceu
lá em casa com um bouquet de espigos. Nunca mais o ouvi subir as escadas em
passo estougado. Não podíamos ser todos felizes outra vez?
Parkinson, diz que é #Parkinson.
4 Apr 2019
Machos, fêmeas e alheiras de bacalhau
O professor Vladimiro estava
sentado na primeira mesa do lado esquerdo. O professor Carolino estava sentado
na segunda mesa do lado esquerdo que partilhava com o professor Benedito, que
por seu lado ombreava comigo sentada na terceira mesa do lado esquerdo. Como
isto começou não sei muito bem mas terá sido quando o Carolino disse que
gostava muito de comida tradicional portuguesa e que lhe sentia a falta quando
estava fora de portas. Daí até às alheiras foi um salto. O Benedito é mestre
nesta arte de bem fazer alheiras e partilhou com o Vladimiro, com o Carolino e
comigo alguns segredos da preparação das mesmas. Seguidamente a conversa rumou
às variações de alheiras. Por esta altura a Floribela já estava sentada na
outra mesa, lugar que ocupou depois de trocar umas palavras de queixume vocal
sobre a razão de se encontrar a Oeste, ou lá o que isto é. O Vladimiro
comunicou que já tinha comido alheiras de cogumelos, imagine-se. O Benedito
reclamou a tradição nas alheiras 'até já há de bacalhau' e 'o judeu que inventou
as alheiras deve a estar voltas na cova'. Alguém proclamou 'deviam chamar-lhe
outra coisa, mas alheiras não' . Eu concordei, concordámos todos e deliberámos
unânimes nesta assembleia reunida impromptu 'chamem-lhe outra coisa!' A
Floribela também concordou e quando nos recolhíamos das alheiras e passávamos
para o pão-de-ló, desprendeu-se algo do íntimo da Floribela que a impeliu a
afirmar 'é como um casal.' 'Para mim é macho e fêmea!' proclamou ufana enquanto
assassinava impiedosa um pastel de massa tenra que nada disse em sua defesa e
foi deglutido sofregamente. E não era de bacalhau. O que se passou a seguir
ficou suspenso na estupefacção do Vladimiro, sentado na primeira mesa do lado
esquerdo, do Carolino sentado na segunda mesa do lado esquerdo e do Benedito,
que por seu lado ombreava comigo sentada na terceira mesa do lado esquerdo.
Reclamei, nesta altura senti as pontas dos caracóis ruivos a chamuscar de
furores, o Carolino diz que fiz uma entrada a pés juntos ' um casal é um casal,
macho com macho, fêmea com fêmea, macho com fêmea. É igual'. A Floribela não se
deu por achada e continuou a afirmar a
sua convicção de nem alheiras de bacalhau nem macho com macho nem fêmea com
fêmea. Saiu arrastando consigo o manto rançoso do preconceito, que me apressei
a pedir para limpar 'tragam a esfregona que isto não se aguenta' e 'abram as
janelas que não se pode com o cheiro' antes que mais alguém se estatelasse na
sua própria homofobia de alheiras de bacalhau e ficámos todos suspensos
inquirindo como raio se passa de alheiras a machos e fêmeas e casais. Era eu, o
Vladimiro, o Carolino e o Benedito.
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