26 Nov 2019

Sónia Ribeiro, 37 anos


Não havia se não leveza naqueles dias a sul. O calor, o abandono dos corpos, o arremessar das tarefas quotidianas, o fardo das obrigações que via Guadiana abaixo, e o meu pai que imaginava naquele mesmo lugar e a quem sempre homenageei na intimidade de mim. Depois saíamos para jantar e sentavamo-nos na esplanada do restaurante a servir de pasto para as melgas, e paradoxalmente felizes e gratos por tudo. A mulher servia-nos quase sempre. Era alta, de cabelo negro comprido sempre amarrado num rabo-de-cavalo longo que abanava quando ela se deslocava entre as mesas e que obedecendo à gravidade se estendia como um pêndulo no corpo esguio e magro. Tinha olhos negros aos quais não era fácil arrancar um sorriso, tinha uma irmã com filhos e tratava as crianças da casa com intimidade. Não havia suavidade no seu trato. Havia rispidez e eficiência, rapidez e pouco tempo para conversa mole. A mulher trouxe-me muitas vezes a felicidade nas fritadas de peixe, so por isso poderia subir ao meu Olimpo, nas sardinhas alimadas ou albardadas, nos bifes de atum com pores-do-sol rubros e o casario incendiado da luz que se crepuscula na Espanha na outra margem. A mulher forte e incansável era também os dias a sul. Um dia de maio a notícia soou 'mais uma', e o pressentimento de que poderia ter sido a mulher do cabelo longo, dos olhos negros, a mulher-mãe, a mulher jovem e esguia tão resoluta e eficiente, com uma vida pela frente. Não lhe sabia o nome até então. "Sónia Ribeiro, 37 anos, Vila Real de Santo António, no Algarve. Foi a filha mais velha, de 16 anos, que a encontrou ao fim da manhã, pelas 11h30, quando regressava da escola. (...) O corpo, caído no chão, tinha pequenas perfurações no peito e uma maior perto do coração, que se soube mais tarde terem sido feitas com um picador de gelo, quando Sónia já estaria morta por asfixia." O meu sul nunca mais será o mesmo. O dela deixou de ser. 



Em memória da Sónia Ribeiro.

25 Nov 2019

Dia um a três semanas do fim


Primeira aula do dia e da semana, burburinho e agitação. Dou voz de comando, duas ou três advertências inequívocas. A agitação acalma-se não sem antes haver reclamações quanto à minha agora proverbial 'directness'. Depois relembro 'hoje é o dia Internacional da eliminação da violência contra as mulheres' reagem 'a sério?' Sim. Segue-se risada e conversa inconsequente, a ligeireza de que a violência é só e apenas dar na cara de alguém. Levanto a voz irritada e digo-lhes que tenho a certeza absoluta de que todas as mulheres presentes já tinham sido vítimas de violência e dei exemplos inspirados num texto que postei no instagram logo pela  fresca. Abateu-se um silêncio cúmplice, nem um remoque ou um reparo, um manto espesso que nos imobilizou por instantes e quando lhes disse que o silêncio era bastante eloquente,  reclamaram que eu hoje estava agressiva, por outras palavras que não estas. Hoje, como sempre que abordo este assunto, fiquei com a clara certeza de que vejo apenas a ponta do  iceberg quando os tenho à minha frente, e isto assusta-me. Tanto trabalho rio abaixo  e tão pouco tempo. Levantada a invernia, fomos todos felizes outra vez e quase me esqueci da acusação da adorável Genoveva no início da aula 'de VERDE, stora! Nem parece seu!' Não parece mas também não era verde. A negação é uma coisa extraordinária

17 Nov 2019

Crónicas do sono #10


Podes vir agora que a noite se aninhou no luar e lá fora não há se não quietude, não silêncio. Podes vir agora que estendi o corpo e lhe sacudi os afazeres dos dias, obrigações, preocupações, que me afastam tanto de ti, ausências prolongadas que me põem exausta e consumida de vida. Vem agora, meu amor, que o corpo se aninha na lassidão do calor. Larguei os cachos na almofada, respiro com a doçura dos amantes felizes. Se vieres agora, amar-te-ei intensa e feliz até que o sol te chame e te lance noutros braços do outro lado do mundo. Vem, meu insondável sono, meu amante castigador, preciso tanto de ti.

14 Nov 2019

Urbanidade(s)


Dizia-se na aldeia que a dona da padaria tinha um feitio pouco apaziguador, que não guardava para si o que lhe não agradava e que a #urbanidade era parca ou inexistente no tratamento dos empregados. E fiquei a saber de tudo isto porque, um dia na mercearia entre a maçã e 'amêxa', alguém terá dito que a dona da padaria tinha moído o juízo de tal forma a uma empregada, já não rapariga nova, que a pobre estava mal dos 'nerbos'. A dona da padaria era uma mulher pequena, morena, magra e com o despacho característico das mulheres na aldeia. Jamais ficararia quieta se pudesse andar e jamais se calaria se pudesse falar. Foi assim também que relatou um dos seus partos. Ao que parece, terá rezado a cartilha ao clínico, o homem assustado actuou a contento e também sei isto, não porque eu e a dona da padaria sejamos íntimas. Sei isto porque a dona da padaria, um dia enquanto aviava as carcaças e as bolas, relatou esse momento de excelsa elegância que algumas mulheres gostam de relatar: o parto, essa odisseia de esgares, gritos, fluidos, bolsas de sei lá quê que se derramam por uma mulher desprevenida abaixo, médicos, médicas, enfermeiros e enfermeiras a espreitar mistérios insondáveis da natureza feminina, contracções, dilatações e expulsões, valha-me a santa, para que é precisa a inquisição, se se pode parir? E assim foi que, de olhar vivo, explicou, fluente e experiente na desova, como tinha sido.
Na padaria, o pão não era sempre o mesmo. O pão era sempre o mesmo, mas a denominação ia variando, portanto não bastava apenas falar-se a língua dos homens, havia que dominar o código, as nuances, as particularidades, as subtilezas. O que num outro lugar é denominado de papo-seco, na padaria não se resumia a esta sensaborona classificação. Uma ocasião, e após ter sido convenientemente informada de mais uma alteração da nomenclatura, entrei já tarde na padaria, numa hora do dia em que o pão habitualmente já teria sido todo vendido e perguntei à dona da padaria se ainda havia pão. Impunha-se a utilização da nomenclatura recentemente adoptada e, mesmo sentindo que talvez estivesse a perguntar o óbvio, algo visivelmente exposto à minha frente, arrisquei 'Tem maminhas?' A mulher não se ficou e atirou-me 'Não quer mesmo que lhe responda, pois não?' Trocámos um sorriso cúmplice e perguntei 'Então, mas como é que se chama esse pão?' A mulher retorquiu 'Bicos! Ah muito bem! Então e há bicos?' A mulher disse 'Não sei se o padeiro vai cozer mais pão hoje'. Pedi-lhe 'Então, veja lá, se faz favor, se o padeiro vai fazer mais bicos hoje...' No meu tempo, padeiro fazia pão. Bicos eram deixados, se não para outras ocasiões, definitivamente para outras áreas profissionais.

12 Nov 2019


Os canais e as cornijas, as casas estreitas, quase em equilíbrio instável, os espaços verdes, a proverbial tolerância que não se estende ao resto da Holanda, e bicicletas omnipresentes, eis Amesterdão. Pode ser muito bela, sim, mas pode ser austera e gélida, coberta por mantos densos de humidade pesada. A primeira vez era Inverno, março talvez, uma visita fugaz num dia de muito frio. Da segunda vez fazia setembro e todos os dias foram dias de muito frio. Um setembro áspero no ano de todas as solidões antes dos setembros vindouros de céus rubros e dias luminosos. Nesses dias longos de céu cinzento o tempo estava do meu lado. Tempo para calcorrear a cidade. Tempo para me procurar. Tempo de ver e sentir. Sobrou-me a espaços, eu era de mais para o tempo e o tempo para mim, guardava-o como se o reutilizasse mais tarde, não precisava de tanto, pedaços que podia oferecer, sobra-me este bocado, pode fazer-te falta, leva, mas o tempo não se guarda, não se deixa guardar e pairava em mim como roupa desajustada, espaços lassos por onde entrava a humidade de setembro cinzento dos canais. Nos meus caminhos avistava ao longe o Nemo e o Museu Marítimo e cruzava pontes e canais sempre acompanhada de tempo e da solidão, tive em demasia nesse ano também. Quanto mais bela a cidade mais dolorosa a solidão e Amesterdão é bela. Levava o tempo e a solidão a museus, monumentos, sítios, ruas na esperança de que a arte os acalmasse e mitigasse o sentimento estranho de fim, de verão, de um tempo, de uma vida. Num desses dias fui ao Museu Van Gogh, tão previsível como o ocaso dos dias e lá andei, falando de mim para mim, comentando com o tempo e a solidão. Pôs-se almoço e encontrei conforto numa sopa de #tomate com pimenta preta no silêncio do restaurante do museu, quente, reconfortante, luminosa, antídoto improvável na cidade que se mede por solidões.

8 Nov 2019

Crónicas dos sono #9


Larga-me. Não te quero perto agora. Não me beijes o pescoço com esses teus lábios lúbricos. Não me enroles os caracóis nesse teu dedilhar sensual, essa onda quente que me baixa as defesas, e fico submissa e lânguida, sabes bem. Não posso agora. Logo, tu sabes, quando os mochos se alvoroçam, e a lua brilha no topo dos pinheiros, estarei pronta para ti, o corpo nu abandonado, sem artifícios, só eu. Vem logo, meu amor fugidio, serei tua, meu sono insondável. Não agora. Afasta-te.