30 Jul 2019

Oeste


Update da vida a Oeste: hoje está sol. Já não acordei com a morrinha outonal, o hibisco não tem gotículas de orvalho, quem sabe se não terei hoje de, na hora da quietude, regar o manjericão e dar um jeito à hortelã. Hoje posso andar de calções sem sentir que a qualquer momento terei de me socorrer das meias da Serra da Estrela que não tenho para compensar o gelo que perspassa as coxas robustas cor de lula deste prolongado outono/inverno. Hoje posso soltar o corpo decadente e abandoná-lo na ideia de estio, deixá-lo libertar-se ali na espreguiçadeira sobre a relva para sentir que o calor de que tanto preciso me ame. Hoje, se calhar, ainda bebo um gin tónico na hora dos crepúsculos do mundo e sento-me de pés nus na relva bem assentes, os pés na terra, a ver o dia a cair, não está frio nem chove, quem sabe passará um barco lá longe na linha periclitante que separa os céus dos mares, a luz das trevas. Se calhar terei ainda de correr veloz atrás do copo, do corpo, do estio, das várias vontades do mundo, e isto porque está um vendaval que me enxugou e açoitou quatro máquinas de roupa: lençóis, cobertores, mantas e mantinhas e outras miudezas de que não se deve falar em público. Lavasse eu esta casa com uma medida bem cheia de detergente e algum amaciador para equilibrar as asperezas da alma e ainda teria de a ir buscar ao oceano que todos os dias perscruto da janela da cozinha. Com um bocadinho de sorte aterraria num outro lugar, limpa e perfumada e começar-se-ia de novo. A Oeste nada de novo. Só vento. E palavras.

18 Jul 2019

Amanhã


Muitos rostos, muitos sonhos, muitos cansaços, muito amor e desilusão. Sentam-se todos à nossa frente nesta vida de ser professor. Umas vezes recolhemo-nos no conformismo de se ser adolescente, há-de passar, foi um momento mau, mas não pode ser, fale com ele ou ela, sim? e às vezes penso que também já fomos todos um bocadinho assim, mais coisa menos coisa, adolescentes, tolos, intempestivos. Não o seremos ainda? Assinamos papéis para atestar sabe-se lá a quem que estivemos em x dia a x hora a tratar de assuntos do seu educando e uma grande parte das vezes há cumplicidades, silêncios e sorrisos, que não cabem naquele rectângulo estúpido como todos os rectângulos estúpidos que reduzem tudo a estatísticas que se dissiparão algures num relatório igualmente estúpido capaz de provocar frémitos de alegria em barras coloridas na vertical que se julga indicar coisas, estúpidas também elas. Valem zero.
Sentou-se algumas vezes à minha frente, esta mulher de rosto doce e discretamente alegre e modos também  doces e sempre educados. Nunca precisou de me dizer que o seu regaço era grande e generoso. Era-o. Falávamos do que falam duas mulheres, uma professora e outra mãe. Via-a algumas vezes ao ir para a escola quando ela continuava  mãe e eu professora mas já não do filho que fez com que os nossos caminhos se tivessem cruzado. Cumprimentavamo-nos na fugacidade dos dias que nos devoram e que a haviam de devorar numa madrugada de crueldade sem explicação. Tinha 50 anos. A mulher, mãe dedicada, continua comigo. Amanhã recebê-la-ei na sala de directores de turma com hora marcada e depois de amanhã vou vê-la a passar na rua do lado direito quando eu for a caminho da escola. Sorriremos uma para a outra, eu dentro do carro, ela fora, e entender-nos-emos sem mais, como fizemos antes. Amanhã.


12 Jul 2019

Crónicas do sono #6


E aqui estamos outra vez. Eu deitada na minha posição preferida, barriga para o ar, o corpo com a displicência do estio, tranquilo e suave, quase indefeso, e chegas. Senti-te quando entrei em casa e me chamaste, a sedução a que não resisto, esse jeito de me fazeres tua a que obedeço indefesa. Deita-te, sussurraste, obedeci. Chega-te agora mais perto, meu eterno amante fugidio, meu sono castigador. Envolve-me nesse véu protector de onde não quero sair e seremos um. Vem. Hoje. Agora.

8 Jul 2019

Crónicas do sono #5


És tu outra vez, és tu que me percorres as costas como um fio de mel. Sinto-te, meu amor, a quereres tomar-me como tua, o teu halo tépido que envolve o meu corpo antes de me abandonar em ti e fazeres de mim o que queres, submissa e conformada nesta necessidade de ti. Tu sabes, vais e voltas quando queres, e quando te julguei meu outra vez, resolveste fugir-me para os braços de outros, o lugar que arrefece e os olhos que despertam na escuridão de mim. Mas agora que me queres, serei forte e irresoluta, procurarei bosques e mares que de ti me mantenham longe, procurarei mundos nos livros para que não te sucumba. Não te quero agora, sono caprichoso, minha tumultuosa metade. Volta logo, e serei tua outra vez. Agora não. 

Ermos


Não vos cansa a negatividade, a visão do mundo e dos outros como um lugar de trevas e ressentimento, um sítio ermo onde todos os outros estão errados e nós, os eleitos e iluminados, temos razão? O Mariano não cumpriu. O Grancelino até nem era mau de todo mas também não cumpriu porque chegou atrasado, esbardalhou-se nas gorduras que lhe albergam a infelicidade e isso quase lhe foi fatal, isso e ter visto a melhor amiga morrer aos 11 anos, mas isso e outros issos interessam pouco ao lado de coisas inomináveis que só respondem por siglas, nem sequer acrónimos que eu gosto de acrónimos. A Dicotomina, coitada, esforçou-se bastante mas é limitada e é melhor escrever l i m i t a d a, ao que reclamei do alto dos meus cabelos eriçados, 'não, não podem escrever isso, digam de outra maneira', os nomes das coisas podem ser muitos, a realidade soará menos dura se lhe arredondarmos os epítetos e às vezes precisamos, a Dicotomina merece, e foi isto a sequência lógica de uma série de considerações sobre a vida de merda da Dicotomina, aceitemos agora sem limitações que há vidas de merda, e também sem arredondar palavras, talvez as arestas do M e do R se espetem nas almas dos presentes. Não espetaram. Já o Timóteo é um bardina, queria passar de ano, mais coisa menos coisa, assim, sem mais nem menos, ou quase. Afirmei, pedindo para entrar na conversa que talvez fosse melhor dar-lhe a oportunidade, decidiria por si e mostraria o seu valor, mas não, ainda senti um olhar certeiro que só foi desviado porque a rodela prateada do meu colar se interpôs no caminho e me salvou a indignação certeira ao peito, lá onde me crescem e palpitam coisas sentidas, e agora estaria erma de palavras também eu.
E depois, lá para o quase fim, disse 'olhem, ontem fiz uma tarte tatin de alperces d e l i c i o s a!' Ao meu lado senti a energia doce da aprovação e comecei a evadir-me daquele sítio ermo para onde há tartes tatin de alperces e um raio de sol que ilumina os lugares ermos para que deixem de o ser.
Não vos cansa tudo isto?