29 Feb 2020

Nem

Tenho tantos cansaços que não sei como os chamar, cansaços plurais e histriónicos, cansaços que percorrem em mim caminhos sinuosos, costas abaixo, como um fio de mel espesso. Estendo-os esticando as pernas com o crepitar da lareira em fundo, um copo de tinto meio vazio que se afasta na medida em que distendo este corpo feito de horas e dias e meses, de tempo, chuvas e estações, e de mim, de calor e maresia, da bruma das manhãs, ajeito em circunferência o cabelo de medusa e penso qualquer coisa 'mostra-me esses silêncios de que és feito' e palavras assim que aparecem soltas e em qualquer momento. Sabem os deuses os seus desígnios e porque sou visitada por elas. Entendesse eu de deuses e de desígnios, e tudo seriam preces e orações. São palavras apenas, estas. Alimento a voracidade da lareira, e tento nada pensar para que o sono me visite. Nem em cansaços nem em frases nem em palavras nem em homens nem em mulheres. Nem

Pausa

Sol, luz, céu azul. Uma manhã de sol apazigua quase tudo, as palavras que se encarrilam em frase como quase sempre fazem, e que depois podem desaparecer se não as escrever ou que ficarão, assim as possa registar. E desde ontem que as procuro nesta tentativa egoísta de expulsar a devastação de te saber morto, nessa morte final e definitiva que te foi acontecendo, nessa incapacidade de me veres como tão bem me conhecias. Senti-te um bocadinho morto nesse dia, os teus olhos não reconheciam os meus, já não éramos nada.
Foi ontem. E eu não sei ainda se o pior é a revolta, esses deuses e desígnios, esse destino ou universo, isso que fez com que o corpo te traísse, logo tu, bom homem de coração aberto, bom professor, excelente colega, ou a dor de te saber morto. Que raio de coisas acontecem nesta vida que te impediram de gozar a tão merecida e desejada pausa de alunos e colegas, escola. Podiam ter-te dado tudo isso, os deuses, pausa, descanso, tempo para ti, tempo para tudo. Pausa da vida jamais.

6 Feb 2020

És tu? O toque de veludo que me serpenteia o corpo, o véu sereno sobre mim, o abraço suave que não sei de onde vem, serás tu? És tu que chegas, meu amor inesperado? Vem mais perto, mais ainda, não fujas. Não ouço os mochos nos pinheiros, os cães já não ladram, nada há senão nós na noite terna, silêncios pungentes onde nos detemos quando tu, e só tu queres, e eu me estendo, alma e corpo, submissa e recolhida. Nada temas de quem tanto te deseja. Não me abandones, meu sono adorado.

#crónicasdosono