30 Dec 2018


O rapaz com a cadela branca malhada de preto levantou-se. Está agora do outro lado da rua à conversa com um rapaz igual a ele, do mesmo tamanho, só em azul escuro e sem cadela. O casal descontraído com os gémeos de cerca de um metro cada um também já se foram. Atrás de mim sentam-se quatro mulheres que pressinto, não vejo, e a conversa oscila entre 'mas estás a gozar comigo?' e 'não tens frio?' e 'olha, vamos para aquela ali'. Há uma refilice constante nestas quatro mulheres de idades diferentes, duas delas ainda não sabem que são mulheres, saberão a seu tempo. A conversa é interrompida porque alguém chegou, uma voz de homem e outra de mulher. Trocam cumprimentos, imagino que votos de bom ano. As quatro mulheres desaparecem entretanto. Não estão do outro lado da rua numa outra cor e tamanho, e sei que não estão porque desapareceu o perfume intenso e irritante, uma espécie de inquietação miudinha que se me penetrou na pituitária e sabem os deuses do que este meu olfacto de beagle é capaz. Restabelecida a ordem, aconchego-me no casaco de pêlo cor de labrador e no cachecol do Nepal, nem sei porque vos falo destes pormenores, e penso que todos podem errar, até o Pai Natal que lhes trouxe aquele perfume irritante. É por isso que não acredito nele.

28 Dec 2018


Enquanto a tarde se adentra de mansinho, vejo a minha imagem reflectida na porta e lembro-me da frase da minha amiga Cristina 'envelhecer é uma merda'. O reflexo na porta retorna-me uma mulher baixa, de cabelos alvoroçados, de corpo tranquilo, nem uma réstia de inquietação sob a blusa preta semi-justa, o rosto a declinar, rugas em torno dos olhos. Envelhecer só é uma merda porque nos lembram permanentemente de quem fomos e o 'quem fomos' resume-se à vaidade de um corpo jovem e porque jovem mais belo e perfeito, intocado pelo tempo, uma peça de roupa a estrear sem rugas nem vincos. O passado agrilhoa-nos a algo que talvez nunca tenhamos sido. Se deixarmos, sufocar-nos-á como as imagens de infâncias e natais felizes, as que nunca ninguém teve mas que a  memória se terá encarregado de colorir em tons pastel de sorrisos cândidos e camisolas de caxemira. Envelhecer não é uma merda. É uma réstia de sol decadente que me incendeia o cabelo nesta tarde abençoada de dezembro. Podemos ser apenas?

26 Dec 2018

O ano de todas as solidões


Estávamos no ano de todas as solidões e chamo-lhe ano de todas as solidões porque nesse ano começou um ciclo de solidões várias que só acabaria em novembro. Nesse ano eu estava sentada na sala de cinema, não sei porquê mas na minha imaginação ou no baú das memórias reverbera o número dois, e se reverbera passará a ser, as memórias são sempre o que queremos que elas sejam, não necessariamente o que foram, uma construção de mulheres e momentos vividos, como este em que me sentava na sala de cinema com um homem, desconhecido, a meu lado. O desconhecido cujas feições, cheiro ou toque desconheço por inteiro, na minha reconstrução ele é apenas o desconhecido, talvez o desconhecido que mais permanece em mim, sentava-se a meu lado, era de tarde, talvez uma sessão das duas, e eu com a minha solidão sentámo-nos no escuro. Tudo tão soturno: uma mulher de 30 e poucos anos, sentada com a sua solidão numa sala de cinema escura e um desconhecido ao lado. A mulher de 30 e poucos anos não sabia que tinha levado consigo a solidão. Sentiu-a quando no ecrã à sua frente apareceu Omara Portuondo e a mulher que há uns meses a tinha visto actuar em Havana não tinha com quem partilhá-lo. Havia o desconhecido, era uma possibilidade. Por milésimos de segundo partilharia a surpresa e a emoção, a solidão sentar-se-ia no recanto recôndito onde vive quase sempre, e a mulher sorriria para o desconhecido, apatetada, porque tinha a solidão dentro dela a espernear. Sei. As solidões esperneiam às vezes, são possessivas e exigem exclusividade. Não aconteceu. A mulher embalou-se ao som de Dos Gardenias, agarrou-se à solidão de sempre, por esta altura enrolava-se-lhe no pescoço com um gato carente, e guardou para sempre o momento.
E isto só voltou porque ao que parece a sala de cinema vai fechar. Pode levar a solidão com ela. As memórias jamais.

5 Dec 2018


A Genoveva estava sentada na última carteira e depois de ter perscrutado o teste que lhe chegara às mãos, atirou-me com um ar sério 'stora, a stora fez um smile no meu texto'. Fiz? Sim. 'É porque escreveu algo de que  gostei' A Genoveva não se deu por vencida e continuou com um ar intrigado, que raio de bicho lhe havia de calhar este ano que faz smiles no que escreve. Desci ao seu lugar, também eu inquieta, isto de ser professor produz cansaços vários que se reproduzem exuberantes nesta época do ano, sabe-se lá o que me teria passado pela cabeça, se a caneta não me teria resvalado nesta fúria classificadora . A Genoveva estendeu-me o teste com prontidão, li a frase e disse ' e então, isso que disse não é bonito?' Ah, respondeu, é!
Hoje o Eleutério estava sentado no seu mundo, no seu mundo não estaria sentado, voaria por certo, porque o Eleutério voa muito entre retas e paralelas, perpendiculares e sobrepostas, e tem um mundo só seu que reparte com folhas imensas de papel branco. 'Gostei muito do seu trabalho' disse-lhe. O Eleutério abriu os olhos em surpresa, inclinou-se levemente para trás, levou a mão ao peito e questionou assustado 'do meu, stora?' 'Sim, do seu, ora!' O Eleutério balbuciou algo meio sem jeito e continuou na sua vida de linhas e papel branco, algo inquieto com esta mania de os professores elogiarem o trabalho dos alunos.
Não sei muito bem em que ponto os alunos se desabituaram de ouvir um elogio, as pessoas, de resto, ou se alguma vez se teriam habituado, mas a vida sem um elogio é um terreno seco de onde só brotam vazios. Não me habituarei.

4 Dec 2018


A Maria Amélia vivia nas berças na altura em que se podia chamar berças às berças, os lugares recônditos do interior do país, lá onde o perfume da maresia não chega. A Maria Amélia era rapariga sensível, escrevia bem e muito, e era professora primária, nessa altura das berças também não havia professoras do primeiro ciclo do ensino básico. A Maria Amélia pronunciava as palavras com a prontidão das gentes da Beira Alta, sem palavras meias, de pronúncia cerrada, dizia tchotcha para chocha, os s carregados com o arrastar do x, um b ou outro trocado por v e vice-versa. E uma entoação tão própria que ainda hoje me ecoa, mas não sei se o que me ecoa é a Maria Amélia, ou se é a minha própria infância que me salta ao caminho quando, incauta, se me evocam passados.
A Maria Amélia era mulher de vigor, pouco feminina, e casada com um homem velho, só as fortes se casam com homens velhos. Tinha passada larga, larga como o seu sorriso e gargalhar espontâneo. Deste amor salpicado de granito e madeiros de natal, perfumado com míscaros e dióspiros, nasceram-lhe vários filhos. E filhas. O homem era velho, ela era máscula, mas quem disse que o amor é feito de homens jovens e mulheres femininas em impetuosas cópulas? Não é, se não a Maria Amélia não havia parido meia dúzia de crias. Da ninhada fazia parte um rapaz. O mais novo. O rapaz vinha à cidade de vez em quando, trazido pela mãe. E não tinha nome. Era o Janota. Maria Amélia contava depois as peripécias do seu Janota, relatava que  tinha uma vocabulário impróprio para flocos de neve e que soltava qual língua de serpente a cuspir fogo, amiúde, quando descia as serranias. Se os caprichos não lhe eram satisfeitos incendiava tudo em seu redor com o mais impiedoso vernáculo. Maria Amélia contava os episódios com manifesto incómodo, vergonha, nessa altura das berças também não havia incómodos nem desconfortos, mas era estratégia infalível e nem assim deixou de ser o Janota. Acontecia sempre que vinha à cidade, assim como acontecia ir espreitar para dentro dos secadores dos tocados femininos quando acompanhava a mãe ao salão Maribel para esta fazer uma mise.
Da Maria Amélia nada mais se soube. O seu janota terá sido promovido a senhor Janota ou Sr. Dr. Janota, não se sabe se ainda espreita as mises das senhoras ou se continua a brindar o mundo com a panóplia de impropérios. Onde paira é um mistério tão grande como o seu próprio nome.