24 Aug 2019

Crónicas do sono #8


Chega aqui. Mais perto. Deita-te a meu lado e sobe-me como a maré, acaricia-me como a brisa do estio que me entra agora pela janela enquanto me despojo do dia, da noite, de mim, um corpo que anoitece no crepúsculo de si. A noite que se pôs lá fora embalar-nos-á, seremos um até cantar a cotovia, e os raios de sol choverem fios dourados pela janela. Vem agora e serei tua, meu sono desejado, meu amante inquieto.


20 Aug 2019


Saio do carro e vou ao encontro do mar. Está vento, uma brisa fria, o mar revolto e maré despudoradamente vazia. Começo a caminhar com o mar pela esquerda e começo a escrever. Palavras e frases que se juntam e fazem texto. Escrevo sempre. Escrevo muito quando tenho o corpo entretido. Há gente com quem me vou cruzando, o perfume do mar e a brisa que me açoita o corpo e o cabelo. O aroma dos pinheiros imiscui-se neste encontro com o mar e comigo.  Intrometido. Escrevo algo sobre a bênção de viver num sítio destes, a uma distância de 10 minutos, com mar e céu, e azul até onde a vista alcançar, e largo cansaços e negritudes que voam com a ventania. Depois penso em algo sobre a perfeição, que aquele momento seria perfeito, se não houvesse carros, e que a perfeição é enfadonha e irritante, a sua busca inimiga de Eros, e continuo. Faz-se zénite entretanto, uma rabanada de vento forte leva-me as palavras e os textos, ainda corri atrás deles mas a arriba era alta, o vento forte e senti que eles precisavam de liberdade pela força com que me fugiram e o coice de um vocativo. Vi 'ses' e 'quandos' a voar, as vírgulas rodopiavam com o vento e as exclamações despenharam-se na areia, o ponto pesa de mais para voos. Havia expressões como 'quando o mar se põe nu' e 'a inação estrangula-me as palavras', 'o vestido abraçou-me com a volúpia dos amores impossíveis' mas fugiu tudo. Menos isto.

6 Aug 2019

Crónicas do sono #7


És tu outra vez, sorrateiro dos infernos. Mordiscaste-me os tornozelos enquanto me derrubava nuns afazeres, quase garantiria que me lambeste a panturrilha que trago nua neste estio arredio. Eu sei que eras tu. Não negues. Agora que espero um outro afazer e me abandono no sofá, fizeste-te convidado e impuseste-te. As mãos firmes na cintura que deixaste escorregar pela ânfora das minhas ancas quando me levantei resoluta. Sabes bem, esses humores de aparecer quando queres cansam-me, irritam-me e às vezes apetece-me deitar-te fora quando vou ao lixo, não mereces muito mais, ou levar-te comigo quando caminho junto ao mar e libertar-te lá do alto, em dias menos maus, que ficasses com as gaivotas. Chato impertinente. Se viesses à noitinha, na hora dos silêncios, podíamos ser tão felizes, amaciar-me-ia em ti, largaria sonhos e pesadelos e em uníssono inspiraríamos a noite e o luar, estrelas e constelações, que Vénus nos abençoasse e Júpiter nos protegesse. Não insistas agora. Vai -te embora, sono matreiro. Vai -te, fico com o silêncio, não contigo.

2 Aug 2019

Cem cansaços


O cansaço extremo é das piores coisas que me pode acontecer. Senta-se ali ao lado da tristeza profunda e alimenta-a como se fosse Hänsel e Gretel até ficar rotunda e luzidia. Se eu deixar acabará por me atirar para o fosso claustrofóbico que trato com paciência, há-de passar, mas com tempo contado e sem complacência a partir de certa altura. Neste tempo que se adivinha de pousio dos males de exaustão, calço os ténis, uns calções, sacudo cabelos e soturnidades, e faço-me ao caminho, com o mar do meu lado esquerdo. Inspiro a maresia, cheiro o tempo e deixo que o sol e o vento me sacudam, corpo, cabelo, alma. Ainda vi alguns cansaços, os mais débeis, a voar lá para longe onde a vista não alcança. Conheço-os bem e sei como rodopiam e se contorcem antes de desaparecer.  Há carros e gente pelo caminho, uma mulher com dois filhos adultos detém-se nas plantas para lá da cerca de madeira e murmuram algo inaudível. Desço depois até à praia pela escadaria de madeira, e imagino-me a libertar-me da roupa sobre a areia, a saltitar nas pontas dos pés com a subtileza das mulheres que não tenho, nádegas e cabelo ao ritmo desse caminhar leve, até ao mar onde mergulharei sem hesitar. Arrumo a ilusão, mulher, aquilo é o mar da Ericeira, congelar-te-á as partes mais recônditas do corpo, falta-te a graciosidade das mulheres nuvem, e subo as escadas que me parecem infindáveis no zénite que agora se pôs. Retorno com o mar pela direita desta vez, o zénite discreto deste agosto tímido e a maresia por companhias. Quando chegar a casa, pendurarei os cansaços à porta, tenho a certeza, amarfanhados em sacos, lá no cemitério das coisas moribundas onde relego o que não tem remédio, descartá-los-ei um a um, todos. Só assim conseguirei ver o sol, o mar, a maresia, a imaginar-me destemida rumo ao mar. Preciso muito de os conseguir ver. Preciso muito de me conseguir ver. Sem cansaços.