A Capitolina e o Eleutério reclamaram
que o tempo dos pais é que era bom. O Eleutério argumentou que era tudo mais
simples, tinha-se menos, diz ele, mas que os pais lhe narram tempos de
felicidade e ligeireza, parece tão fácil diz o Eleutério em desespero e num
inglês escorreito que parece tão fácil como o tempo mítico da infância dos seus
pais. O Eleutério desconhece a
inevitabilidade de uma adolescência conturbada, porque os pais o pressionam, os
professores o pressionam, a escola o pressiona, no fundo, há uma conspiração
mundial, do universal reino da 'pressionação' que domina as galáxias e
inferniza a vida de ser jovem em pleno ano da graça de 2019, o tal em que o
Vaticano se lembrou que talvez fosse boa ideia dizer umas coisas sobre as
batinas levantadas e crucifixos em riste. A Capitolina fixou o olhar em mim, e
as restantes Capitolinas e Eleutérios, quando eu disse que ser adolescente
'antes' era um grande tédio. O Inácio ripostou que 'era um
grande tédio mas que não havia pressão'. Passei então à estratégia hard
core, peguei no meu sabre de luz e
expliquei-lhes que nesse tempo abençoado, antes do universal reino da pressão,
as crianças se sentavam tanto mais à frente na sala de aula quanto mais prestigiados
fossem os progenitores, contei-lhes que a Maria
seria sempre a Maria, não sairia da cepa torta se tivesse de contar com
o estímulo da professora primária para se escapar ao triângulo mulher-a-dias -
criada - dona-de-casa, caso assim o almejasse, e que sem saber muito bem
porquê, podia levar reguadas ou estaladas, ou porque sim ou porque não, muito
provavelmente porque era burra, e os burros só merecem um castigo: porrada.
Importante era que a Maria levasse umas bem assentes naquele lombo, devia haver um crédito
diário de bordoada a distribuir naquele tempo, e importante também é que o pai
ou a mãe da Maria não iam à escola pedir contas à professora pelas reguadas, em reverente subserviência.
Concluí dizendo que ainda trago na memória pedaços daquele tempo cinzento, mas
guardei para um outro dia o dia em que a Almerinda levou porrada e chorou e
misturou giz com lágrimas e eu de impotente e atónita guardei para sempre
aquele momento, um misto de mágoa e culpabilização que ainda hoje me atormenta
e revolta. Também não lhes disse que uma parte da professora que os ouvia se
fez naquelas paredes austeras de crucifixos e rezas pela manhã e das lágrimas
da Almerinda. Lá fora as rãs
reivindicavam a primavera precoce e o aroma do zénite apaziguava a memória da
Almerinda. Recolhi o sabre de luz.
25 Feb 2019
23 Feb 2019
Engate
Um destes dias fui ao cinema a
horas pouco próprias. A sessão era às 12.40, o que determinou uma refeição
muito frugal e rápida também. A escolha recaiu sobre uns ovos, os ovos são como
o inglês ficam sempre bem, e o meu olhar deteve-se nos ovos Benedict, que me
catapultaram de imediato para o filme 'A
noiva em fuga', um dos meus 'guilty pleasures'. A mulher incapaz de se casar e
que, segundo o último noivo, teria de descobrir
antes como gostaria dos ovos, se mexidos, cozidos, escalfados ou
Benedict, povoou durante um tempo as minhas inquietudes em relação ao
matrimónio. Como ela, imaginava-me a escapulir-me do incómodo de compromissos,
o casamento pode apertar como sapatos novos, e eu de stilletos na mão, desceria
a trote a escadaria da basílica para me escafeder
para todo o sempre, elevada para o éter na passarola de Bartolomeu de Gusmão a
quem eu tinha dado um toque de whatsapp 'tou pronta. Podes vir'. Agarrar-me-ia
às patas da passarola que me ergueria pelos céus ao som dos carrilhões, no meu
sonho havia carrilhões ainda e repicavam lá do alto em aflições, acho que
entoavam 'Saint of me' dos Rolling Stones. E isto para dizer que aquele filme
tem uma das mais belas cenas de #engate: Look, I guarantee there'll be tough
times. I guarantee that at
some point, one or both of us is gonna want to get out of this thing. But I
also guarantee that if I don't ask you to be mine, I'll regret it for the rest
of my life, because I know, in my heart, you're the only one for me." Um
dia também descobri como preferia os ovos.
A palavra de hoje na enciclopédia
ilustrada era #engate.
17 Feb 2019
Dia de São Valentim
Vinham todos com sono. O Ramiro
também vinha com sono mas isso não o impediu de proclamar alto e bom som em
medida profilática contra perguntas indesejáveis 'setora, estamos todos
solteiros!'. Alguém reclamou flores e chocolates. A professora declarou 'as flores
murcham e os chocolates comem-se, esqueçam isso', rematando que ali e à mão de
semear só tinha abraços. Encolheram os ombros e continuaram a reivindicar
flores e chocolates, quem, mas quem é que oferece abraços se se podem ter
'coisas'? Não havia chocolates, muito menos flores, o melhor era
reconciliarmo-nos todos com a triste realidade de só haver abraços e de só nos
termos uns aos outros, noventa minutos de língua estrangeira pela frente, e
começarmos a aula. A professora pensou como havia de remediar esta míngua de
namorados, flores e chocolates, logo hoje, precisamente hoje, e declarou, após
jorrar umas banalidades sobre o amor e o consumismo 'que disparate, meninos!'
transformado em peluches e rosas vermelhas de cetim a cheirar a puta, a professora
não disse puta, a professora não diz puta, que poderiam fazer um kahoot sobre o
dia de São Valentim. O Ramiro concordou e aliou-se à Miquelina ao seu lado. A
Daniela mudou-se para o lado da Luciana. A Capitolina e a Estrela, o único par
da turma, entricheiraram-se atrás dos cabelos longos e esquálidos da Marcenda,
como sempre, sabemos todos como o amor pode ser rotineiro. Por esta altura, o
Vitorino já tinha resurgido qual Fénix
por trás do Ramiro, e o Eliseu declarara mais uma vez a sua irremediável solidão
de fêmea. Faltava o código, um nick name, que caminho tão fácil para a
felicidade afinal, e durante os minutos seguintes, as citações do amor, os
filmes do amor, a ciência do amor e as canções do amor em forma de questionário
fizeram esquecer a ausência de flores e chocolates, essa solidão que se
infiltra em nós como a nuvem indelével de humidade em dias de invernia
pegajosa. Houve risos e exclamações de espanto, súplicas para não parar,
barulhinhos de satisfação, a Miquelina entoou com sentimento o refrão de uma canção de amor requentada, e quando
pelas dez horas soou o alarme já não se falava de chocolates e flores, nem
sequer da sua ausência, ou de ausências sequer.
Parece fácil. O amor devia ser fácil assim.
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