25 Feb 2019

Sabre de luz


A Capitolina e o Eleutério reclamaram que o tempo dos pais é que era bom. O Eleutério argumentou que era tudo mais simples, tinha-se menos, diz ele, mas que os pais lhe narram tempos de felicidade e ligeireza, parece tão fácil diz o Eleutério em desespero e num inglês escorreito que parece tão fácil como o tempo mítico da infância dos seus pais.  O Eleutério desconhece a inevitabilidade de uma adolescência conturbada, porque os pais o pressionam, os professores o pressionam, a escola o pressiona, no fundo, há uma conspiração mundial, do universal reino da 'pressionação' que domina as galáxias e inferniza a vida de ser jovem em pleno ano da graça de 2019, o tal em que o Vaticano se lembrou que talvez fosse boa ideia dizer umas coisas sobre as batinas levantadas e crucifixos em riste. A Capitolina fixou o olhar em mim, e as restantes Capitolinas e Eleutérios, quando eu disse que ser adolescente 'antes' era um grande tédio. O Inácio ripostou que 'era um grande tédio mas que não havia pressão'. Passei então à estratégia hard core,  peguei no meu sabre de luz e expliquei-lhes que nesse tempo abençoado, antes do universal reino da pressão, as crianças se sentavam tanto mais à frente na sala de aula quanto mais prestigiados fossem os progenitores, contei-lhes que a Maria  seria sempre a Maria, não sairia da cepa torta se tivesse de contar com o estímulo da professora primária para se escapar ao triângulo mulher-a-dias - criada - dona-de-casa, caso assim o almejasse, e que sem saber muito bem porquê, podia levar reguadas ou estaladas, ou porque sim ou porque não, muito provavelmente porque era burra, e os burros só merecem um castigo: porrada. Importante era que a Maria levasse umas bem assentes naquele lombo, devia haver um crédito diário de bordoada a distribuir naquele tempo, e importante também é que o pai ou a mãe da Maria não iam à escola pedir contas à professora pelas reguadas, em reverente subserviência. Concluí dizendo que ainda trago na memória pedaços daquele tempo cinzento, mas guardei para um outro dia o dia em que a Almerinda levou porrada e chorou e misturou giz com lágrimas e eu de impotente e atónita guardei para sempre aquele momento, um misto de mágoa e culpabilização que ainda hoje me atormenta e revolta. Também não lhes disse que uma parte da professora que os ouvia se fez naquelas paredes austeras de crucifixos e rezas pela manhã e das lágrimas da Almerinda. Lá fora as rãs reivindicavam a primavera precoce e o aroma do zénite apaziguava a memória da Almerinda. Recolhi o sabre de luz.

23 Feb 2019

Engate


Um destes dias fui ao cinema a horas pouco próprias. A sessão era às 12.40, o que determinou uma refeição muito frugal e rápida também. A escolha recaiu sobre uns ovos, os ovos são como o inglês ficam sempre bem, e o meu olhar deteve-se nos ovos Benedict, que me catapultaram de imediato para o filme  'A noiva em fuga', um dos meus 'guilty pleasures'. A mulher incapaz de se casar e que, segundo o último noivo, teria de descobrir  antes como gostaria dos ovos, se mexidos, cozidos, escalfados ou Benedict, povoou durante um tempo as minhas inquietudes em relação ao matrimónio. Como ela, imaginava-me a escapulir-me do incómodo de compromissos, o casamento pode apertar como sapatos novos, e eu de stilletos na mão, desceria a trote  a escadaria da basílica para me escafeder para todo o sempre, elevada para o éter na passarola de Bartolomeu de Gusmão a quem eu tinha dado um toque de whatsapp 'tou pronta. Podes vir'. Agarrar-me-ia às patas da passarola que me ergueria pelos céus ao som dos carrilhões, no meu sonho havia carrilhões ainda e repicavam lá do alto em aflições, acho que entoavam 'Saint of me' dos Rolling Stones. E isto para dizer que aquele filme tem uma das mais belas cenas de #engate: Look, I guarantee there'll be tough times. I guarantee that at some point, one or both of us is gonna want to get out of this thing. But I also guarantee that if I don't ask you to be mine, I'll regret it for the rest of my life, because I know, in my heart, you're the only one for me." Um dia também descobri como preferia os ovos.

A palavra de hoje na enciclopédia ilustrada era #engate.

17 Feb 2019

Dia de São Valentim


Vinham todos com sono. O Ramiro também vinha com sono mas isso não o impediu de proclamar alto e bom som em medida profilática contra perguntas indesejáveis 'setora, estamos todos solteiros!'. Alguém reclamou flores e chocolates. A professora declarou 'as flores murcham e os chocolates comem-se, esqueçam isso', rematando que ali e à mão de semear só tinha abraços. Encolheram os ombros e continuaram a reivindicar flores e chocolates, quem, mas quem é que oferece abraços se se podem ter 'coisas'? Não havia chocolates, muito menos flores, o melhor era reconciliarmo-nos todos com a triste realidade de só haver abraços e de só nos termos uns aos outros, noventa minutos de língua estrangeira pela frente, e começarmos a aula. A professora pensou como havia de remediar esta míngua de namorados, flores e chocolates, logo hoje, precisamente hoje, e declarou, após jorrar umas banalidades sobre o amor e o consumismo 'que disparate, meninos!' transformado em peluches e rosas vermelhas de cetim a cheirar a puta, a professora não disse puta, a professora não diz puta, que poderiam fazer um kahoot sobre o dia de São Valentim. O Ramiro concordou e aliou-se à Miquelina ao seu lado. A Daniela mudou-se para o lado da Luciana. A Capitolina e a Estrela, o único par da turma, entricheiraram-se atrás dos cabelos longos e esquálidos da Marcenda, como sempre, sabemos todos como o amor pode ser rotineiro. Por esta altura, o Vitorino já  tinha resurgido qual Fénix por trás do Ramiro, e o Eliseu declarara mais uma vez a sua irremediável solidão de fêmea. Faltava o código, um nick name, que caminho tão fácil para a felicidade afinal, e durante os minutos seguintes, as citações do amor, os filmes do amor, a ciência do amor e as canções do amor em forma de questionário fizeram esquecer a ausência de flores e chocolates, essa solidão que se infiltra em nós como a nuvem indelével de humidade em dias de invernia pegajosa. Houve risos e exclamações de espanto, súplicas para não parar, barulhinhos de satisfação, a Miquelina entoou com sentimento o refrão  de uma canção de amor requentada, e quando pelas dez horas soou o alarme já não se falava de chocolates e flores, nem sequer da sua ausência, ou de ausências sequer.  Parece fácil. O amor devia ser fácil assim.