23 May 2019

Crónicas do sono #3


Não agora. Não venhas agora enquanto o sol ainda vai alto e os raios de luz estridente me iluminam a alma e beijam o corpo. Não me beijes o pescoço, não me percorras as costas nesse teu indelével toque, o toque que depois de me arrepiar, me embalará nesse doce colo, livre e ligeiro como um manto de seda, onde repousarei inteira e abandonada. Larga-me, meu amor. Espera-me antes pela noite e seremos felizes outra vez, meu querido, meu eterno amante fugidio, meu sono temperamental.

#crónicasdosono

19 May 2019

Crónicas do sono #2


Meu amor, podes vir agora, na hora de todos os silêncios, agora que me despojo do dia, agora que me dispo até de mim e te espero lânguida na cama entre lençóis dos meus sonhos. Vem, meu amor desejado, minha eterna paixão fugidia. Vem até mim, abraça-me nesse teu colo que tanto desejo e embala-me até que a lua se esconda e o sol brilhe. Podes vir, espero-te e quero-te. Vem, meu querido e adorado sono.

#crónicasdosono

14 May 2019

Visitas assíduas



Pela hora de jantar, em tempo de vida da minha avó, o Salazar e o Rei eram convidados assíduos de casa dos meus pais. O meu pai não gostava nem de um nem de outro, menos ainda do Salazar que arrumava a um canto ou pedia para sair, de forma a que pudéssemos ter uma refeição descansada, sem lápis azul nem a carranca austera. O Botas arrastava-se, a queda da cadeira deu-lhe cabo das cruzes, e quando o meu pai lhe atirava com Fátima e a Irmã Lúcia e ia buscar Fátima Desmascarada à estante do corredor e o agitava à sua frente como a um crucifixo num exorcismo, vinham-lhe umas tosses cavernosas e a imagem a preto e branco contrastava ainda mais com a nossa vida a cores de meados dos anos 70. Pior mesmo quando o meu pai clamava que aquilo da #aparição da Cova da Iria era tudo fabricado, onde já se viu aparecer uma virgem em cima de uma árvore a três crianças desnutridas, e que os pastorinhos, as crianças desnutridas, sofriam de um manifesto défice cognitivo que naquela altura se chamava outra coisa qualquer.  A minha avó tolerava o Botas e tinha dias de elogios rasgados. Era ela quem o convidava amiúde e as discussões mantinham-se sempre por causa das estradas que o Botas construíra, a virtude máxima encontrada e citada pela minha avó, e que, não sendo novidade para ninguém em pleno século XX, constituíam o foco de admiração profunda que nutria pelo ditador.
O Rei aparecia mais vezes do que o Salazar. O Rei aparecia quase a qualquer momento, mesmo sem o meu pai em casa, já o Botas só aparecia quando o meu pai lá estava e acredita-se que gostaria do confronto, porque quando não era o Fátima Desmascarada, o meu pai citava-lhe trechos d´ A Velhice do Padre Eterno. Num desses duelos, Fátima Desmascarada de um lado e A Velhice do Padre Eterno do outro, o Botas começou a empalidecer até se tornar transparente e desaparecer pela janela do hall como uma serpentina de fumo. Foi um descanso o resto do jantar.
O Rei aparecia, por exemplo, a meio da tarde, vindo do nada ‘Coitado do rei! Admite-se fazer uma coisa daquelas ao rei! Coitada da rainha!’ Via-o lá por casa algumas vezes em amena cavaqueira com a minha avó, sempre pesarosa com a crueldade do regicídio. O meu pai não se incomodava muito com o Rei, embora o irritasse aquela mania de tratar todos por tu, não suportava manias da realeza nem gente que o tratasse por tu à primeira. Algo me diz que terei herdado alguns genes desse lado. O ar bonacheirão de Sua Alteza Real, seja lá isso o que for, devia inspirar-lhe confiança e como era dado aos prazeres da vida e às artes, o meu pai achava-lhe piada e deixava-o contemplar os quadros a óleo da sala de jantar com mares e naturezas mortas. De modo que havia dias lá em casa em que a alternância entre a monarquia, - a desgraça que se abatera sobre a casa real, coitado do Rei, a rainha D. Amélia viúva e o filho assassinado- e a república na pessoa do Botas, o grande mentor das auto-estradas portuguesas, um Ferreira do Amaral dos tempos da ditadura, se operava com uma rapidez estonteante, assim a minha avó se lembrasse de ambos. E lembrava-se muito.

13 May 2019

Crónicas do sono #1


Vamos ver se nos entendemos. Apareces quando queres, vais-te embora se te apetece, e outras surges intermitente, raras vezes amando-me como eu preciso, e preciso tanto, e mereço. Neste momento, não te quero, nem te preciso, amasses-me tu com hora, na hora de todos os silêncios, quando me enrosco no luar como um gato e seríamos eternamente felizes, se não eternamente, pelo menos na fugacidade de umas horas até que o sol surgisse em fios luminosos pela janela. Largar-te-ia, meu amor fugidio, e aterraria nos teus braços quando a lua se faz luz outra vez. Não me queres e cutucas-me o pescoço em alturas inconvenientes, como agora. Não podias amar-me sempre, meu sono castigador?

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