Pela hora de jantar, em
tempo de vida da minha avó, o Salazar e o Rei eram convidados assíduos de casa
dos meus pais. O meu pai não gostava nem de um nem de outro, menos ainda do
Salazar que arrumava a um canto ou pedia para sair, de forma a que pudéssemos
ter uma refeição descansada, sem lápis azul nem a carranca austera. O Botas arrastava-se,
a queda da cadeira deu-lhe cabo das cruzes, e quando o meu pai lhe atirava com
Fátima e a Irmã Lúcia e ia buscar Fátima Desmascarada à estante do corredor e o
agitava à sua frente como a um crucifixo num exorcismo, vinham-lhe umas tosses
cavernosas e a imagem a preto e branco contrastava ainda mais com a nossa vida
a cores de meados dos anos 70. Pior mesmo quando o meu pai clamava que aquilo
da #aparição da Cova da Iria era tudo fabricado, onde já se viu aparecer uma
virgem em cima de uma árvore a três crianças desnutridas, e que os pastorinhos,
as crianças desnutridas, sofriam de um manifesto défice cognitivo que naquela
altura se chamava outra coisa qualquer.
A minha avó tolerava o Botas e tinha dias de elogios rasgados. Era ela
quem o convidava amiúde e as discussões mantinham-se sempre por causa das
estradas que o Botas construíra, a virtude máxima encontrada e citada pela
minha avó, e que, não sendo novidade para ninguém em pleno século XX,
constituíam o foco de admiração profunda que nutria pelo ditador.
O Rei aparecia mais
vezes do que o Salazar. O Rei aparecia quase a qualquer momento, mesmo sem o
meu pai em casa, já o Botas só aparecia quando o meu pai lá estava e
acredita-se que gostaria do confronto, porque quando não era o Fátima Desmascarada,
o meu pai citava-lhe trechos d´ A Velhice do Padre Eterno. Num desses duelos,
Fátima Desmascarada de um lado e A Velhice do Padre Eterno do outro, o Botas
começou a empalidecer até se tornar transparente e desaparecer pela janela do
hall como uma serpentina de fumo. Foi um descanso o resto do jantar.
O Rei aparecia, por
exemplo, a meio da tarde, vindo do nada ‘Coitado do rei! Admite-se fazer uma
coisa daquelas ao rei! Coitada da rainha!’ Via-o lá por casa algumas vezes em
amena cavaqueira com a minha avó, sempre pesarosa com a crueldade do regicídio.
O meu pai não se incomodava muito com o Rei, embora o irritasse aquela mania de
tratar todos por tu, não suportava manias da realeza nem gente que o tratasse
por tu à primeira. Algo me diz que terei herdado alguns genes desse lado. O ar
bonacheirão de Sua Alteza Real, seja lá isso o que for, devia inspirar-lhe
confiança e como era dado aos prazeres da vida e às artes, o meu pai achava-lhe
piada e deixava-o contemplar os quadros a óleo da sala de jantar com mares e
naturezas mortas. De modo que havia dias lá em casa em que a alternância entre
a monarquia, - a desgraça que se abatera sobre a casa real, coitado do Rei, a
rainha D. Amélia viúva e o filho assassinado- e a república na pessoa do Botas,
o grande mentor das auto-estradas portuguesas, um Ferreira do Amaral dos tempos
da ditadura, se operava com uma rapidez estonteante, assim a minha avó se
lembrasse de ambos. E lembrava-se muito.