14 Feb 2021

Filipe, queres casar comigo?

 Penso no Filipe. Passam umas duas horas já pelo cair do sol e o tempo marcado pelos cortinados, lavados, secos, passados a ferro e pendurados no seu lugar, também sei que passaram umas duas horas porque tenho o estômago vazio e quase podia atirar-me às ondas do mar bravio e gélido se gostasse de mar gélido e não me tivesse ocorrido esta ideia disparatada de adentrar mar em pleno fevereiro, e isto por causa do Filipe que não sei onde parará e adivinho que talvez tenha explodido em desejo e se atirou à anónima excretando secreções hiperbolizadas por esta canícula inesperada convencidos de que o amor se resume a auges, hipérboles, a amo-tes, ais, uis, e mais, não pares agora, sem contas para pagar, máquinas de roupa para fazer e ridicularias a decidir de onde podem eruptir acusações e amuos, cansaços, coisas sem nome que se sentam em nós e sairão a seu bel-prazer, a seu tempo, como todas as coisas que se sentam em nós. O Filipe também pode estar escondido algures por aí, há pinhais e limoais, a fazer-se de morto. Eu se calhar fazia-me de morta, e dizia que sou Maria, qual Leonor, ou sou Leonor, de onde vem esse disparate de me chamar Maria, ou Nonô, toda a gente sabe que sou Nonô quando me apetece e apetece aos outros que eu seja Nonô, qual Maria e qual Leonor, a minha mãe até me queria Inês e eu teria perdido a oportunidade única de ter o nome na moda e ouvir no supermercado várias reprimendas Leonor, anda cá! Leonor, não mexas aí! Leonor, já te disse que não! O Filipe poderá muito bem negar como Judas ou alegar que Filipes há muitos, não deu conta de nada, falas de quê? quando? Ah não vi. Se eu fosse o Filipe usava talvez a primeira palavra que aprendi para responder à pergunta descarada em letras pretas com um coração que sobrevoou os céus mas hoje é dia de pôr o amor a corar, sacudir-lhe a humidade, tirá-lo da gaveta onde estava dobrado a cheirar a mofo e não se diz não. Coitado do Filipe. 

11 Feb 2021

Crónicas síncronas

 Isto hoje estava quase para começar bem: um fim de noite à lareira, a ouvir crepitar os restos de um dia inquieto, uma noite descansada e bem dormida, e eis que se me apresenta 'um dia novinho em folha a estrear', e cito, esta frase não é minha, ouvi-a algures e parece-me muito bem. Estava cinzento e húmido e a opção de ensino não presencial pareceu-me quase bem: estou em casa, confortável, sem máscara, no silêncio que bebo em cascata, e quase parecia feliz. Às 8.15 começo a ligar-me à aula, ligo o Meet, espero que cheguem, e aí vêm eles, meio ensonados e ainda tímidos. Finalmente consigo ver rostos inteiros e pessoas e dou-me por muito feliz. Isto foi antes de eu começar a ver as caras desaparecerem, as vozes a ficarem entrecortadas e eu entrar discretamente em desespero e a perguntar 'estão-me a ouvir, meninos?’ ‘Agora estamos, mas a stora desapareceu.’ Segundos mais tarde a Libânia ficou suspensa na atividade de apresentar um objeto começado por B, depois foi o Quitério que conseguiu apresentar o segundo objeto que era um presente e também era começado por B porque era um 'book' e era o 'Erro de Descartes', e ainda tive tempo de lhe ensinar que o p é mudo em psychology e psychological e por aí fora, e estava em enlevo por um miúdo de 15 anos andar a ler o Damásio, o mesmo que num dia explicou tranquilo e carismático que pai e mãe já tinham sido vacinados e a turma comentou ‘parecias um político agora’ e político era homem bem-falante e falado de discurso escorreito e claro, que se esclareça o que é de esclarecer. Depois eles fugiram todos. Começaram por ficar bolas com iniciais e a seguir o ecrã avisou-me que tinha sido desconectada mais ou menos ao mesmo tempo de ouvir o roncar do corta-relva, e insistiu tanto que talvez pudesse haver relva no asfalto ou nos muros, a erguer-se pelos céus. Por esta altura eu tinha voltado ‘olá, meninos, voltei’, a Catilina mostrou o cão como ‘something that makes you happy’, e o Firmino o violino, sabia lá eu que o Firmino tocava violino, mas também não sabia que o Quitério lia o Damásio, ainda que não me surpreendesse que a Alina estivesse a ler ‘a subtil arte de dizer que se f*da’, nunca é tarde para aprender a subtileza. E foi tudo isto com o ronco em crescendo do corta-relva, santa ingenuidade, um corta-relva. Estávamos já na página 58 do textbook quando com a net a deslaçar-se, o corta-relva no auge e um alvorço de vozes e motores, dei por terminada a sessão síncrona do dia onze do mês de fevereiro de dois mil e vinte e um. Lá fora, duas árvores tombavam calculadamente entre indicações e instruções, diz que estavam podres, tinham de ser abatidas, só não perguntei se tinha mesmo de ser hoje, dia onze do mês de fevereiro de dois mil e vinte e um, logo quando o Quitério disse psychology e eu lhe relembrei que o p era mudo.

7 Feb 2021

The hills are alive

 Se calhar não devia lembrar-me disto porque estou exausta e o cansaço traz no bolso estados depressivos que me atira como rede em mares abertos. Sei que foi a primeira vez que fui ao cinema e foi isto na altura em que os adultos tinham vida própria além dos filhos e a minha mãe e a minha avó decidiram que a cidade era grande e bela e se deitaram a calcorreá-la, e agora que falo nisto, vejo quanto de ambas sou e as saudades que tenho de uma cidade grande. O meu pai levou-me e quase garantia que foi no Éden, garanto que foi no Éden, que também já não é cinema, mas nada é do que era, e eu também já não sou a adolescente insegura a aturar quem me ocupou tempo a mais e de mais e também não sou a criança que naquele dia veria o filme que me ficou para sempre, já não tenho a mão do meu pai, nem sequer sou a mulher que já fui e a que estive hoje e que desaparecerá quando me entregar aos demónios noturnos. Foi isto no tempo antes de odiar musicais mas já não gostava de favas e ainda não tinha cabelo indomável mas era no tempo em que íamos ao Jerónimo Martins ali à Rua do Carmo à procura de carne seca e feijão preto.Tenho a certeza que foi no tempo dos verões na Figueira da Foz, se se pode chamar verão aos açoites enfurecidos da areia e água fria que eu nunca permitia subir acima do tornozelo, mas havia robertos e bolacha americana e o Né chorava muito quando o queriam meter no mar. Nessa altura ainda não tinha saudades da bolacha americana nem do Né, e tenho tantas, meu primo tonto. Também foi no tempo em que a prima Deolinda morava na Rua da Beneficência, o tio Luis na Morais Soares  e foi mais ao menos neste tempo que fiquei a odiar fardas verdes e que percebi que se calhar por causa das fardas verdes o Luís desertou para a Bélgica e a Dona Isaura chorou de tristeza e alegria quando o telefone tocou a dar boa nova em código na casa dos meus pais. Também foi nessa altura que apareceu o 'Fátima Desmascarada' lá em casa. Anos mais tarde fazia-se revolução mas antes eu fui ver o 'Música no Coração' ao Éden e não era Inverno, e era o Éden, tenho a certeza, com o meu pai. Eu, ele e o Capitão von Trapp fomos felizes décadas afora. Até hoje.