31 Dec 2019

Cansaços

Estava tão cansada que quase não ouvia a Libânia a comentar a propósito do filme e da personagem 'já criei o caos agora vou dar ghost', que a Catarina cantou o Halleluijah do princípio ao fim, que o Jaime disse que a paixão era uma coisa química, estava explicado cientificamente e não uma vontade e que inteligente e certeiro concluiu a olhar com olhos de me ouvir 'basicamente arrogância' quando expliquei a incapacidade de alguns alunos em aceitarem as notas, as classificações, os números que desejam mais do que a vida. Estava mesmo cansada e tanto assim que quase ignorava que o Jacinto trazia a tristeza nos olhos, que a Luzinha pedia encarecidamente 'stora, leve-nos! quando lhes perguntei se já tinham ido a um campo de concentração, e que a doce Dudu surgiu do nada e me abraçou como só quem ama abraça. Estava tão cansada que quase me escapavam as aventuras épicas do Antonino numa passagem de ano, as tristezas da Rosália que não pode sair do  país porque não sabe do pai, nem ele dela, nem de ninguém. Estava tão cansada que me apeteceu mandar bardamerda a legislação e os artigos e os decretos e as diretrizes e as maiúsculas e as vírgulas e todas as pequenezas de gente que sabe pouco da gente que se senta à sua frente com os medos do mundo e as incertezas do corpo. Estava tão cansada que me apeteceu bater com a porta e sair. Não estava cansada. Era eu.

29 Dec 2019

Ou assim

Enfio-me numas leggings do ginásio, uma t-shirt e umas havaianas, não há sofisticação que resista a uma mulher que se deita a trabalhos domésticos. Subo as escadas. Primeiro a portada, depois a janela e depois um dia de sol radioso que se abre à minha frente, e o mar lá ao fundo, azul, numa tarja generosa e luminosa. Piso-o, armada de uma vassoura e detergente, e penso que foi por causa daquela vista e o engano de dias ao sol com um livro, ou um copo de vinho branco gelado em noites de lua cheia naquele terraço que me apaixonei por esta casa. E penso quando o sinto debaixo de mim, dos pés quase nus neste dezembro inusitado, és como um homem belo e sedutor, não há quem te resista, e tal como um homem belo e sedutor mais dia menos dia vai dar merda e lágrimas e tristezas e coisas assim. E tu és isso mesmo, primeiro o convite, a sedução do belo, o apelo à tranquilidade e a ilusão de liberdade naquele pedaço de mar que me guia e me chama lá do fundo. Mais dia menos dia começaste a dar problemas, e quantos. Hoje quando lá fui acima feita mulher de trazer por casa, chamaste-me outra vez, mas eu sei que mais dia menos dia vais dar problemas outra vez. É sempre tudo e só uma questão de tempo. E de chuva. Arrumo o texto no bolso interno das leggings e desço a correr, está a estrebuchar junto ao fígado, e a dar-me pontapés na barriga. Ainda bem que só escrevo sobre terraços. Imaginem se me dava para escrever sobre o amor, a morte, o sentido da vida ou  assim.

20 Dec 2019

Atão pronto, elimina-se, foi tudo o que consegui ouvir, porque tinha um cansaço sobre mim pesado como chumbo e soturno como as avé marias, não pensasse eu na libertação daqui a duas horas e teria um desejo absurdo de sofrer, já sabemos que é aí que vamos dar ‘nas nossas ruas, ao anoitecer,/ Há tal soturnidade, há tal melancolia, / Que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresia/ Despertam-me um desejo absurdo de sofrer.’ depois penso que quero tanto um chocolate forte quente ou um Glühwein ou um chá de menta mas não há se não palavras vagas com alíneas, números, relatórios polvilhados de nomes, decretos e mais coisas que se me varrem neste desejo de me evadir ali pela fresta da janela que dá para a horta. E tenho tanto de tudo: cansaço, sono, desespero, um desejo absurdo de não ser aqui nem estar ali. Do lado de lá há um rosto de olhos sorridentes que me quer falar, e eu falo de volta, cortesia é quase amor e é chegado o tempo de ser alegre porque o natal chegou à cidade e também foi nesse momento que disse ‘não sejas bruta, é Natal no mundo, Lisete’ mas a Lisete não quis ouvir e lá continuámos com medidas, riscos de retenção, sala de estudo, esclarecimento de dúvidas, trabalho colaborativo em sala de aula, encarregados de educação e coisas assim que voavam desalvoradas para cá e para lá. A Lisete também contribuiu com concentração, estudo e empenho. Por esta altura rodo o anel de âmbar e madeira que trago no dedo, impaciente, ‘One Ring to rule them all, One Ring to find them,One Ring to bring them all and in the darkness bind them.' estaria melhor na Terra Média onde há sol e planícies verdejantes e hobbits para me alegrar. Pronto, então se não há mais nada...ouço dizer e tudo se levanta rápido, desejos de boas festas e palavreado de ocasião, rio-me com a Lisete, 'estás bruta, mulher', ela retorque 'não estou, sou, mas pelo menos digo o que penso' e atira-me 'e tu cala-te que és igual' e assinto 'sou pois'. Diz que há Natal à espera e eu já nada sei de coisa nenhuma. Um chocolate, um Glühwein, um chá de menta. 'Vamos embora', disse a Lisete, depois de revelar um mal que a traz aflita. Vontades, males, desejos, desesperos e cansaço. Fomos todos.

doze, dez, dezoito, onze, treze, oito


Eram 9.30 quando olhei para o relógio e continuava tudo na mesma. A horta nas minnhas costas, o lago do lado direito, um pullover avermelhado na minha frente e a calma, ‘eu na alma tenho a calma’, como se tivéssemos todo o tempo do mundo. Não tínhamos. Do lado direito alguém suspira no meu próprio desespero, e leio no formulário Daisy e penso “Olha, Daisy, quando eu morrer tu hás-de/ Dizer aos meus amigos ai de Londres, /Que embora não o sintas, tu escondes / A grande dor da minha morte.” Alguém se lembra de algo pelas 9.37 e eu penso que estes sete minutos mais pareceram quarenta e não vejo fim a isto. Lá fora a tempestade amainou, ainda não é o tempo das rãs, as sementes deitadas à terra recolheram-se no coito da natureza, a metamorfose dar-se-á quando no universo se fará solstício, e eu me reinventarei como se Primavera fosse. Depois discutimos todos se um é artigo definido ou numeral, eu evoco a sageza e a soberania da professora de Português em matéria da língua de Camões mas nem assim houve consenso. Prosseguimos como um comboio que parte da plataforma, demorada, lenta, pausadamente, e vêm números que se libertam no éter: doze, dez, dezoito, onze, treze, oito, o número de horas que preciso para me reencontrar na eucaristia de mim neste dia húmido de dezembro. Começo a partir da plataforma. Demorada, lenta, pausadamente. Adeus.

19 Dec 2019

Os olhos tristes do Aurélio

Há muito barulho à minha volta. Em frente a janela, um bloco de prédios azul, a intempérie visível na dança da palmeira perto do lago que não vejo mas sei que lá estava pelas 14.25 quando cheguei. Os deuses mudam tudo a seu bel-prazer e podem tê-lo protegido na casinha do cão que não existe, nem a casinha nem o cão. Começa tudo com muito barulho. Sou informada de que tinha feito merda, o que não é de surpreender no que toca a formulários, e ainda menos surpreendente se me der para usar a razão e o pragmatismo, ambos se dão pessimamente em contextos alimentados pela profusão superlativa de papéis mas revelo pouca progressão na aprendizagem, receio até que me apliquem um programa qualquer para ultrapassar as minhas dificuldades, devo empenhar-me mais para atingir os objectivos. Refaço o papel reclamando sempre, e também não sei porque reclamo sempre, advirá desta minha fraca progressão na aprendizagem, por certo. Depois declamámos uns nacos de prosa pré-feita e a professora de alemão reclamou mais uma vez, diz que não era 'postura', era 'atitude', raios partam a mulher mais a mania das palavras, e perorámos todos sobre a postura e atitude, uns falaram do corpo e isso, houve quem se endireitasse na cadeira por causa da postura, uma atitude bonita de se ver. Por esta altura continuávamos a falar todos e muito, e fomos advertidos que se nos calássemos, acabaríamos em cinco minutos, o que não aconteceu. Depois parimos e revimos mais prosa. Por esta altura a professora de alemão já estava cansada e não quis saber de postura nem de atitude nem mesmo de prosa e de palavras. Lá fora a intempérie agudizava-se. Ela pensou no lago e na casinha do cão e no presépio, na Quitéria que andava meio perdida, no Antonino que só ouvia metade, no Paulino vencido pela timidez, nas aventuras do Antonino e do Mário, nas sonecas do Rogério, nos olhos tristes do Aurélio. Lá fora pôs-se noite. Até amanhã, colegas. O lago continuava no mesmo sítio. 

18 Dec 2019

Puta que os pariu

Sem memória somos nada. Sem memória já não sou pessoa, sou uma cara que se ri à tua frente de cabelo revolto, olhos nos olhos a tentar uma entrada para isso de mim que se te foi, um entendimento, um sinal, um sorriso do lado de lá que nos conseguisse reatar um ao outro, uma centelha ínfima do momento em que desse lado eu fosse eu e tu fosses tu e pudéssemos rir de novo. Sou eu! Já não há nada. O momento em que me apanhaste a chorar na rua quando um amor se me estilhaçou e eu não sabia o que fazer com isso que me trespassava, dor, desespero, solidão, sei lá eu que nome dar à devastação que eu era, e tu vieste e me disseste 'não podes andar assim, rapariga' e me levaste a tomar um café' foi-se-te. Os impropérios que trocavamos à socapa 'puta que os pariu' seguidos de risadas e o retomar da compostura são agora um deserto, um sítio oco de onde nada brota. Se calhar também já não há lugar para o DCIAP, como lhe chamavas, nem para as sonecas breves nos intervalos dos nossos afazeres, nem sequer para quando me dizias 'hoje é o dia em que gosto de te ver pelas costas' quando eu usava aquela saia preta comprida com uma racha vertiginosa, há umas décadas quando éramos todos, jovens, inteiros. Se calhar aquele cartão de São Valentim, que ironia, meus deuses, que as miúdas te fizeram e mandaram, cheio de corações rosa, e que tu meteste na cabeça que havia sido eu também já não é coisa nenhuma. Nem a espuma dos dias. Agora sou só uma cara a sorrir à tua frente. Sou eu, penso dizer-te, mas não digo, o que os olhos não reconhecem as palavras não recuperam. Os deuses não te podiam fazer isto. Puta que os pariu.

11 Dec 2019

Foi naquela altura, no momento exacto antes da Natércia perguntar 'deutschland é um país?' que vieste sorrateiro. Senti-te e ainda te enxotei. Que tempo é este em que me apareces, logo agora que o Firmino, o Quitério, a Natércia, o Libório e o Francelino tinham perguntado todos ao mesmo tempo e depois cada um a seu tempo se os números eram para escrever por extenso, e a Vitalina exausta ter exclamado 'a stora já respondeu isso umas cinco vezes'? Depois o Antonino mostrou-se concentrado, exibiu o teste e proclamou 'ó, fiz tudo! Tudo. Só não sei escrever os números...' A Vitalina revirou os olhos e repetiu 'a setora já disse cinco vezes que não era para escrever'. O Firmino mostrou-se surpreendido e questionou o Antonino 'estudaste?' 'Estudei. Na aula de Economia. E rendeu' esclareceu ufano e sorridente. A Economia havia de ter alguma utilidade, eu sabia. Por esta altura já te sentia mais longe, havia demasiado à minha frente para te poder dar atenção, até porque o Ricardino lutava com o diálogo, não sabia dizer 'e tu?' e exclamou 'xi, se eu tivesse este diálogo com a gaja' e riu-se, rimo-nos todos, até a compostura de uma professora sofre abalos, e sofre de vez em quando como daquela vez em que perante a a assertividade em cumprir uma tarefa o Rogério proclamou 'julgas quisto é o quê? Isto é uma monarquia!' e me investiram rainha nas artes de gerir uma sala de aula ou de ensinar alemão. Posteriormente havia de ser investida imperadora, dizem eles que é maior que rainha, e surgindo do nada até sugeriram que aquilo afinal era uma ditadura. Por esta hora desististe de mim, talvez por piedade, ou pela minha rejeição inequívoca, ninguém merece tantos desafios a um fim de tarde, meu sono castigador. É uma virtude saber quando estamos a mais. Tu estavas.

16.50

Cheguei às 8.30. O Jaime disse que o pensamento lhe surgia primeiro em imagens e que só depois se cobria de uma língua e de palavras, foi isto depois de a Violeta perguntar em que língua é que eu pensava. E depois falaram de religião, então és agnóstico, disseram ao Jaime, e a Catarina depois também relatou que a avó tinha chorado quando ela disse que não acreditava em Deus. Partilharam ainda palavras sobre David Hume, e o 'Evangelho segundo Jesus Cristo', e o Jaime também disse lá pelo meio que 'o xadrez na sua simplicidade e complexidade é uma boa metáfora da vida'. Por esta altura eu acabara de escrever o sumário e adentrávamos o mistério insondável de uma língua que remete para o fim das frases a acção de humanos e de tudo, como se fazer fosse a última coisa que fizéssemos.
A Clara mostrou-me a camisa tigresa e disse 'stora, estamos iguais. Eu adoro padrão tigresa' e estávamos, com uns quase 40 anos de diferença, mas o tempo é o que fazemos dele, e neste tempo entraram professora e aluna, tigresas que nem elas.
Um metro e meio de inteligência e atitude proclamou que os heterónimos faziam cosplay uns dos outros. Também disseram que iriam mascarados de Fernando Pessoa e heterónimos, para o Carnaval, uma disse 'eu vou de Bernardo Soares porque tenho muito desassossego' e perguntaram como é que o Alberto Caeiro não acreditava em Deus, porque só acreditava no que via, eu soltei 'o meu olhar é nítido como um girassol' e eles afirmaram que Kant não devia gostar nada de Fernando Pessoa nem Nietzsche, ao que perguntei 'mas como é que vocês sabem pronunciar Nietzsche assim?' E depois falou-se de Descartes, ao que disse 'miúdos, eu não sou vossa professora de Português' e eles disseram 'a stora é nossa professora de tudo!' e começamos a aula.
Depois a Gabriela estava a falar baixinho com o Daniel e eu perguntei o que era e a Gabriela respondeu que era o Fernando Pessoa e que o Daniel se tinha emocionado com o 'Menino de sua mãe' e contou-me que era o poema preferido da avó. O Daniel sorriu com os olhos, um sorriso só suplantado pelo sorriso do coração, e ele também sorri com o coração. O Jaime disse que era tão altruísta que não ia jogar para deixar os outros ganhar e os outros riram-se, bem satisfeitos com o feito do Jaime, e suplicaram mais uma vez que eu os levasse a algum lado no Natal. Por fim respeitaram cega e literalmente a minha ordem 'Não mexam nos testes' quando o que eu queria dizer era 'Não mudem as porras das versões dos testes do lugar'. Eram 16.50 quando saí. Chovia