19 May 2020

em linha recta

Eram quatro e estavam sentados em linha recta, da janela até à porta. Não se mexeram e estiveram com a paciência dos conformados, a deixar o tempo denso a escorrer horas abaixo, sem entusiasmo nem alegria. Ali estavam desde as dez da manhã, não há intervalos nem pausas. Não foi bom ver os meus alunos. Imóveis e de máscara, poupem-me ao lugar-comum de que os olhos são o espelho da alma e que assim se realçam os olhos, aceitámos o infortúnio de regressar a um local onde outrora houve vida. Depois perguntei como tinha sido o primeiro dia e responderam-me 'sem vontade de voltar para o segundo'. A Mara não mexeu no telemóvel, o Ricardo tão longe e recolhido naquele objecto abjecto que mal o senti, a Lina ficou quieta, depois de comer um snack de um tupperware e recolocar a máscara, e a Marta esteve hirta e atenta. Lá fora os nenúfares estavam proscritos com uma fita delimitadora, o caminho ladeado por baias, que ninguém ouse pôr o pé além. Saíram à hora e eu fiquei a pensar que aquilo agradaria certamente a muitos: alunos perfilados, caminho indicado, actividades mortas, a felicidade de ninguém roubar aulas a ninguém, toda a gente sabe que tudo o resto é ruído e só as aulas trazem a luz ao mundo, e de não me atormentarem o sono com alíneas e directrizes estúpidas. Entrar ordeiramente pelo caminho prescrito, despejar 'matéria' e sair. O céu para uns. O inferno para outros. Pobre escola, o que te estão a fazer.

14 May 2020

E@D

Acabei há pouco de dar a última aula online à minha turma de Alemão. Dos onze alunos não há um único que vá às aulas presenciais a começar na próxima segunda-feira, o que quer dizer duas coisas, ou mais, mas fiquemo-nos por aqui: como com o regime de aulas presenciais acaba o EaD, estes alunos deixam de ter aulas, sem mais, que ninguém se convença que mandar tarefas para trabalho individual é o mesmo do que estar com eles e trabalharmos em conjunto, se não fosse por mais, saber se estão bem e saber deles já era o suficiente; irei à escola três vezes por semana e esperarei obediente dentro da sala de aula por alunos que não vêm. Se isto não é um contra-senso não sei o que é, mas sei bem o nó na garganta e a sensação de os ter abandonado ao seu destino. É isto a escola?

12 May 2020

Papá

Por esta hora já terias refilado contra a insistência nas comemorações do 25 de abril, nas do primeiro de maio na rua, e talvez do Avante, que ideia peregrina, dirias, mas poderias muito bem ter feito o contrário. Eras mestre no espírito de contradição que me levava ao limite tantas vezes. Terias refilado bastante. Isso sei. Já de Fátima dirias o previsível, tu e Fátima numa só frase pouco tinham de católico, muito menos de cordato e herdei de ti a total ausência de fé mariana. Hoje, num dia sem pandemia, ou apesar dela, terias entrado tão feliz cá em casa como sempre fizeste, nunca te vi aborrecido aqui. Terias admirado o azevinho, e a glicínia que se reverbera em exuberantes humores lilazes, em cascata sobre a pérgula. Depois entravas na casa perfumada com o leite-creme acabado de queimar e na nossa eucaristia brindaríamos com um Dão encorpado, o mesmo que procuro quando estou à lareira no inverno, comigo em mim, e te procuro e celebro com o crepitar da lenha, o aroma apaziguante do madeiro, a infância que recriamos feliz quando ninguém era morto, e havia farturas na feira e míscaros no outono. Hoje é o teu dia. Sem leite-creme nem Dão. Não me chamaste filhota nem Nocas. O azevinho continua enorme, e vi o primeiro pirilampo quando fui respirar noite. Parabéns, Papá. Da tua filhota.