29 Oct 2020

Can you see the real me?

 Isto foi numa outra vida, na outra vida em que eu andava a aprender a ser professora com quem sabia e com quem não sabia mas achava que sabia,  como tudo na vida. Nós rimo-nos muito no dia em que ela apareceu com um lenço ao pescoço atado com um nó para ocultar o chupão roxo, o sinal óbvio de luxúria a que julgamos a salvo os professores, era humana afinal, só faltava vê-la às compras no supermercado. Também dizia que eu era uma mulher inteligente, música para os meus ouvidos, e sabia o óbvio, o que os professores sabem e intuem, que eu não estudava nada. Não estudava. Eu adorava a cadeira e gostava daquela alma longilínea, se calhar as almas não tem forma, mas o corpo alto e esguio, uma conversa e aulas estimulantes e eu com vontade de tudo saber eram o cocktail perfeito que me trazia enleada no erotismo de aprender. 

As redes sociais trouxeram-me de volta pessoas a quem tinha perdido o rasto e que me deixaram feliz. Durante uns dois anos regressaram sucessivamente à minha vida, alguma partida do universo ou o acaso e a aproximação proporcionada por esta vida virtual. Ela apareceu também, mas já não tinha a alma longilínea, talvez nunca tivesse tido, tinha picos como os cactos da piteira, e constituiu uma das minhas enormes desilusões por aqui. A professora que me encantou albergava uma mulher de pensamento enviesado, a destilar amargura e a partilhar não raras vezes notícias falsas. É sempre só e apenas uma questão de expectativas. As minhas, como noutras situações, eram altas e, vejo agora, efabuladas. E é sempre e só uma questão de tempo, a desilusão é certa como a bruma de outono, nós é que insistimos no perfume sonhado da primavera.

10 Oct 2020

 É domingo, estou estendida no sofá. Tenho uma calmaria por este corpo fora incapaz de irritações ou aborrecimentos, ouço a minha respiração ritmada e levemente audível, podia ser a Julieta a ressonar, mas não, é o meu corpo que ronrona na tranquilidade de mim. Espreito o que vai por aqui. Tanta amargura, tanto mal-dizer, tudo tão negro, tantos palpites sobre uma doença que nos traz cativos e sobre o qual todos sabem tanto que é surpreendente como não são galardoados com o Nobel de tudo saber e sobre tudo palpitar, criticar, vociferar. A máquina da louça gorgulha e ronca, soubesse eu entender-lhe a linguagem e talvez estivesse também ela sonoramente a manifestar-se contra o uso de máscara, o não uso de máscara, a China e o Trump, os números do Covid, da Sars-Cov2, das zaragatoas, do SNS, dos malandros dos professores, o Costa, da vida  dos outros. 

Todos os dias me faço à estrada e entro na escola, encontro colegas e amigos à distância, dou aulas aos meus alunos, rio-me com eles, ouço-os. Nunca o conseguiria fazer se estivesse prenhe de tanta amargura, maledicência, desalento e medo. Nem sequer viver e sei que mais  tarde ou mais cedo o meu corpo, eu mesma, se viraria contra mim. É domingo. Podia ser segunda. Não tenho espaço para apocalipses nem paciência para sabedoria superlativa sobre tudo e nada. Há sol lá fora. Não faço nada aqui.

4 Oct 2020

365 dias do gato

 

Hoje é o Dia do Animal, eu diria que este foi o ano do animal, o ano do gato cá em casa e em mim. Começou no fim do ano passado com uma gatinha branca linda e sedutora que nunca largou esta casa e a vizinhança. Ainda me convenci de que tinha dono, apareceu uma ou outra vez escovada, ou então foi mesmo wishful thinking ou negação, o que tenho em clarividência tenho em negação e tudo pode acontecer, abandonar um animal está entre o que mais odeio e desprezo num ser humano, talvez me protegesse da crueldade de deitar fora um animal. Ela era dócil e muito habituada a humanos. A Lolita, por seu turno, começou lentamente a acusar o peso dos mais de dezasseis anos, chegou pela mão dos meus pais e pela paixão imediata da minha mãe por aquele bicho que achei tão estranho, nunca tinha visto uma tartaruga, e que ela escolheu como nossa com o coração. Nós sentimos que este seria o último ano da Lolita, só não sabíamos quando. A Conchita, assim foi baptizado aquele pedaço de doçura e sedução de pêlo farto, ficou prenha do Juvenal, o gato não residente e obviamente acarinhado e alimentado por nós, e confiou e confiou-me o cuidado de quatro adoráveis gatinhos bebés que reconheciam a minha voz muito antes de abrirem os olhos. Logo a mim, rapariga nada ligada à maternidade e a quem seres pequenos fazem muita impressão, detesto sentir que alguém depende de mim. Os Conchitos eram lindos e doces mas não seriam meus, e, portanto, foi emocionalmente um desafio não me poder amarrar ao Miguelinho, à Amélie, ao Tomé e à Nikita mas também soube, sempre soube se for honesta comigo, que era tarde de mais quando entre lágrimas os entreguei um a um aos meus amigos que foram tão generosos e os acolheram e amaram, e amam. Era demasiado tarde para o conseguir fazer com a Conchita também. Quem tem animais sabe: a cumplicidade, a intimidade, os pedidos de ajuda e a confiança ficam tatuadas na nossa alma, o coração é sempre o mais fácil de convencer. A Lolita começou a piorar, restou-nos reforçar todo o amor que tinha sido uma constante ao longo dos dezasseis anos e meio, o carinho imenso de quem nos ajudou, e a quem estarei eternamente grata, a acompanhá-la na partida. Deixámo-la adormecer ali no sofá da sala, ela assim decidiu, estava tranquila,  aconchegada, e fui-a sentido afastar-se. Quando a pontinha do rabo deixou de reagir como sempre tinha feito ao meu 'Lolita' deixei-a aconchegada, e adormeceu para sempre. Neste equilíbrio de forças entrou a Conchita com compreensível apreensão da Ruiva, da Julieta e da Clarinha, há bufadelas e rosnadelas, nesta nova realidade cá em casa.  Todos os dias da janela da cozinha vejo florescer a planta que colocámos sobre o sítio onde eu e o Hélder deixámos  com as nossas mãos a nossa eterna Lolita, numa quase madrugada do último dia de Agosto.
A esta hora pensarão o de sempre, mas falas assim de gatos? Os gatos têm sempre o melhor de mim: não me julgam, são verdadeiros e transparentes, não fazem concessões hipócritas, amam-nos sem a obrigação da fidelidade, amam-nos porque nos amam, como eu entendo o amor. São uma experiência estética e sensual, passeiam-se de caudas no ar sem falsas modéstias, e exibem o seu charme sem pudor. Se calhar podíamos aprender algo com os gatos ou amar simplesmente. É mais do que suficiente.

1 Oct 2020

Corar ao luar

 Podia ser aquela camisola preferida, o top cinzento de momentos de solidão aprazível, o vestido cor de abóbora que me disseram hoje ficar a condizer com a casa de banho da escola, ou as botas de camurça que levaste na correria do quotidiano para a cozinha e que salpicaste com o azeite virgem suave, nem sei de onde vêm estas expressões ridículas de virgindade patriarcal. Podes ser tu. A vida que te salpica de manchas para as quais não há solução, não são nódoas, são marcas. Tu não sabes. Ainda. E lavas. Lavas outra vez, esfregas com a raiva de dias amargos e se tomares atenção, repara bem, continuam lá, mais ou menos percetíveis, os outros não vêem. Estendes-te ao sol, deixas-te corar ao luar, com sorte apanhas orvalho e estarás hirto e gelado que nem bacalhau da Islândia ou da Noruega, tanto faz para ti, que tremendo disparate e que grata memória de infância. Não saiu a marca. Esfregas-te mais. Outra vez. Outra ainda. Vê lá se se notas alguma coisa. Não vejo nada, dizem-me, não se nota. Tu sabes que não se nota. Que notam os outros de ti? Lavas a vida inteira, esfregas, coras-te ao luar. Tu és o top cinzento, as botas de camurça, se calhar o vestido cor de abóbora. Desiste de esfregar. Esquece o corar ao luar. Não sai mais. Vê lá se notas alguma coisa. Não vejo nada, dizem-me. Eu sei.