A Maria Amélia vivia nas berças
na altura em que se podia chamar berças às berças, os lugares recônditos do
interior do país, lá onde o perfume da maresia não chega. A Maria Amélia era
rapariga sensível, escrevia bem e muito, e era professora primária, nessa
altura das berças também não havia professoras do primeiro ciclo do ensino
básico. A Maria Amélia pronunciava as palavras com a prontidão das gentes da
Beira Alta, sem palavras meias, de pronúncia cerrada, dizia tchotcha para
chocha, os s carregados com o arrastar do x, um b ou outro trocado por v e
vice-versa. E uma entoação tão própria que ainda hoje me ecoa, mas não sei se o
que me ecoa é a Maria Amélia, ou se é a minha própria infância que me salta ao
caminho quando, incauta, se me evocam passados.
A Maria Amélia era mulher de
vigor, pouco feminina, e casada com um homem velho, só as fortes se casam com
homens velhos. Tinha passada larga, larga como o seu sorriso e gargalhar
espontâneo. Deste amor salpicado de granito e madeiros de natal, perfumado com
míscaros e dióspiros, nasceram-lhe vários filhos. E filhas. O homem era velho,
ela era máscula, mas quem disse que o amor é feito de homens jovens e mulheres
femininas em impetuosas cópulas? Não é, se não a Maria Amélia não havia parido
meia dúzia de crias. Da ninhada fazia parte um rapaz. O mais novo. O rapaz
vinha à cidade de vez em quando, trazido pela mãe. E não tinha nome. Era o Janota.
Maria Amélia contava depois as peripécias do seu Janota, relatava que tinha uma vocabulário impróprio para flocos
de neve e que soltava qual língua de serpente a cuspir fogo, amiúde, quando
descia as serranias. Se os caprichos não lhe eram satisfeitos incendiava tudo
em seu redor com o mais impiedoso vernáculo. Maria Amélia contava os episódios
com manifesto incómodo, vergonha, nessa altura das berças também não havia
incómodos nem desconfortos, mas era estratégia infalível e nem assim deixou de
ser o Janota. Acontecia sempre que vinha à cidade, assim como acontecia ir
espreitar para dentro dos secadores dos tocados femininos quando acompanhava a
mãe ao salão Maribel para esta fazer uma mise.
Da Maria Amélia nada mais se
soube. O seu janota terá sido promovido a senhor Janota ou Sr. Dr. Janota, não
se sabe se ainda espreita as mises das senhoras ou se continua a brindar o
mundo com a panóplia de impropérios. Onde paira é um mistério tão grande como o
seu próprio nome.
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