18 Dec 2019

Puta que os pariu

Sem memória somos nada. Sem memória já não sou pessoa, sou uma cara que se ri à tua frente de cabelo revolto, olhos nos olhos a tentar uma entrada para isso de mim que se te foi, um entendimento, um sinal, um sorriso do lado de lá que nos conseguisse reatar um ao outro, uma centelha ínfima do momento em que desse lado eu fosse eu e tu fosses tu e pudéssemos rir de novo. Sou eu! Já não há nada. O momento em que me apanhaste a chorar na rua quando um amor se me estilhaçou e eu não sabia o que fazer com isso que me trespassava, dor, desespero, solidão, sei lá eu que nome dar à devastação que eu era, e tu vieste e me disseste 'não podes andar assim, rapariga' e me levaste a tomar um café' foi-se-te. Os impropérios que trocavamos à socapa 'puta que os pariu' seguidos de risadas e o retomar da compostura são agora um deserto, um sítio oco de onde nada brota. Se calhar também já não há lugar para o DCIAP, como lhe chamavas, nem para as sonecas breves nos intervalos dos nossos afazeres, nem sequer para quando me dizias 'hoje é o dia em que gosto de te ver pelas costas' quando eu usava aquela saia preta comprida com uma racha vertiginosa, há umas décadas quando éramos todos, jovens, inteiros. Se calhar aquele cartão de São Valentim, que ironia, meus deuses, que as miúdas te fizeram e mandaram, cheio de corações rosa, e que tu meteste na cabeça que havia sido eu também já não é coisa nenhuma. Nem a espuma dos dias. Agora sou só uma cara a sorrir à tua frente. Sou eu, penso dizer-te, mas não digo, o que os olhos não reconhecem as palavras não recuperam. Os deuses não te podiam fazer isto. Puta que os pariu.

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