31 Dec 2020

Meio cheio

 Nápoles, Dublin, Torrevieja, Poznań e Madrid não se cumpriram. Naqueles primeiros dias de enorme solidão profissional, fechada em casa e sem saber exactamente o que fazer, perguntei-me vezes sem conta enquanto preparava aulas como é que ia fazer agora, como se faz afinal isto de dar aulas à distância, como é que vou dar a volta a esta porra, estava sozinha, entregue a mim mesma, e passei a dormir bem, uma façanha que já não conseguia há anos. Na aparente solidão encontrei o prazer do silêncio em que sempre me encontro, a acalmia de não ter ninguém à minha volta a perguntar-me coisas, a chatear-me com alíneas, a moer-me a cabeça com ridicularias, folhas de excel e merdas sem nexo, e foi bom. Tinha escola a mais na minha vida, não alunos a mais, a primeira lição que tirei daqueles dias de beber silêncio e saborear os pores-do-sol da janela da sala, agora também sala de aula. Havia, na verdade, coisas a mais na minha vida: supermercados, centros comerciais, compras. Sem eles, passei a comprar os molhos de nabiças e grelos à porta da mercearia, descobri que sabia esperar mais do que sabia, perserverar, ouvir, confiar, e nunca sucumbir a dias plúmbeos, jamais à histeria e nunca ao medo. Houve abraços por dar aos meus amigos no momento em que eles precisavam. Houve distância física como se todos tivéssemos peste, deixei cair os braços que ficaram hirtos e inúteis junto ao tronco não fossem cair em tentação dum abraço espontâneo, o toque de que também sou feita, tudo tão estranho e distante. Houve sempre gente em que pensei sempre, agora que o trabalho se fazia morto. Houve mar e sol e cor, caminhadas e maresia, liberdade enfim. Houve gatos que chegaram e partiram, emoções com as quais lutei três meses certos. Houve amigos a quem os confiei e a quem estarei eternamente grata. Uma planta no jardim onde dorme a nossa Lolita, e um adorável bicho felpudo fez-se nosso. Houve gente de quem me aproximei, gente de quem fiquei ainda mais próxima, houve Açores na minha vida, sabem os deuses por que e como amo aquela terra de paixão, e houve risadas sem fim com a minha mãe, três dedos de raizes de cabelo branco, unhas rentes sem glamour nem brilho, houve afectos, muitos, houve ver o copo meio-cheio e sempre o que penso quando tenho uma dor forte, vai passar, há-de passar. Ninguém sai incólume deste ano. Eu saí mais eu. Obrigada a quem esteve desse lado. 'No man is an island'.  Nada mais certo.

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