26 Dec 2018

O ano de todas as solidões


Estávamos no ano de todas as solidões e chamo-lhe ano de todas as solidões porque nesse ano começou um ciclo de solidões várias que só acabaria em novembro. Nesse ano eu estava sentada na sala de cinema, não sei porquê mas na minha imaginação ou no baú das memórias reverbera o número dois, e se reverbera passará a ser, as memórias são sempre o que queremos que elas sejam, não necessariamente o que foram, uma construção de mulheres e momentos vividos, como este em que me sentava na sala de cinema com um homem, desconhecido, a meu lado. O desconhecido cujas feições, cheiro ou toque desconheço por inteiro, na minha reconstrução ele é apenas o desconhecido, talvez o desconhecido que mais permanece em mim, sentava-se a meu lado, era de tarde, talvez uma sessão das duas, e eu com a minha solidão sentámo-nos no escuro. Tudo tão soturno: uma mulher de 30 e poucos anos, sentada com a sua solidão numa sala de cinema escura e um desconhecido ao lado. A mulher de 30 e poucos anos não sabia que tinha levado consigo a solidão. Sentiu-a quando no ecrã à sua frente apareceu Omara Portuondo e a mulher que há uns meses a tinha visto actuar em Havana não tinha com quem partilhá-lo. Havia o desconhecido, era uma possibilidade. Por milésimos de segundo partilharia a surpresa e a emoção, a solidão sentar-se-ia no recanto recôndito onde vive quase sempre, e a mulher sorriria para o desconhecido, apatetada, porque tinha a solidão dentro dela a espernear. Sei. As solidões esperneiam às vezes, são possessivas e exigem exclusividade. Não aconteceu. A mulher embalou-se ao som de Dos Gardenias, agarrou-se à solidão de sempre, por esta altura enrolava-se-lhe no pescoço com um gato carente, e guardou para sempre o momento.
E isto só voltou porque ao que parece a sala de cinema vai fechar. Pode levar a solidão com ela. As memórias jamais.

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