Estávamos no ano de todas as
solidões e chamo-lhe ano de todas as solidões porque nesse ano começou um ciclo
de solidões várias que só acabaria em novembro. Nesse ano eu estava sentada na
sala de cinema, não sei porquê mas na minha imaginação ou no baú das memórias
reverbera o número dois, e se reverbera passará a ser, as memórias são sempre o
que queremos que elas sejam, não necessariamente o que foram, uma construção de
mulheres e momentos vividos, como este em que me sentava na sala de cinema com
um homem, desconhecido, a meu lado. O desconhecido cujas feições, cheiro ou
toque desconheço por inteiro, na minha reconstrução ele é apenas o
desconhecido, talvez o desconhecido que mais permanece em mim, sentava-se a meu
lado, era de tarde, talvez uma sessão das duas, e eu com a minha solidão
sentámo-nos no escuro. Tudo tão soturno: uma mulher de 30 e poucos anos,
sentada com a sua solidão numa sala de cinema escura e um desconhecido ao lado.
A mulher de 30 e poucos anos não sabia que tinha levado consigo a solidão.
Sentiu-a quando no ecrã à sua frente apareceu Omara Portuondo e a mulher que há
uns meses a tinha visto actuar em Havana não tinha com quem partilhá-lo. Havia
o desconhecido, era uma possibilidade. Por milésimos de segundo partilharia a
surpresa e a emoção, a solidão sentar-se-ia no recanto recôndito onde vive
quase sempre, e a mulher sorriria para o desconhecido, apatetada, porque tinha
a solidão dentro dela a espernear. Sei. As solidões esperneiam às vezes, são
possessivas e exigem exclusividade. Não aconteceu. A mulher embalou-se ao som
de Dos Gardenias, agarrou-se à solidão de sempre, por esta altura
enrolava-se-lhe no pescoço com um gato carente, e guardou para sempre o
momento.
E isto só voltou porque ao que
parece a sala de cinema vai fechar. Pode levar a solidão com ela. As memórias
jamais.
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