24 Jan 2019


Quando chegávamos ao Marienplatz, a búlgara proclamava-se oficialmente cansada, não sem antes me estender os sacos de compras e me nomear sua guardiã. Soltava um profundo 'ich kann nicht mehr', arrastava-se como todas nós após um dia de trabalho intenso em língua estrangeira e partia para as compras soltando o lamento que se dissiparia nos céus bávaros. Voltaria no dia seguinte pela mesma hora e eu transformar-me-ia uma vez mais na guardiã dos seus pequenos prazeres consumistas. Os lamentos podem adquirir hábitos se os soltarmos à mesma hora e surgirão inconvenientes e insistentes como os homens chatos. A búlgara não sabia disso, também não sei se sabia de homens chatos, e a partir do quarto dia da primeira semana largava-os como a balões coloridos no meio da praça quando tocava o carrilhão. Aos lamentos, não aos homens, bem entendido e por isso voltavam todos os dias sensivelmente à mesma hora. Quase como os homens chatos.
A búlgara regressou-me um destes dias quando me digladiava com o meu cansaço e dei por mim, enquanto metia a terceira no carro e me largava estrada fora, a pensar em língua estrangeira: ich kann nicht mehr. Tinha um cansaço pesado como chumbo, instalado no sítio onde me nascem as cores. Tenho medo dos cansaços, tiram-me discernimento e dão-me fome. O discernimento faz-me muita falta, é com ele que me guio quando quase tudo perece entre atas e relatórios, quezílias e merdílias que não existe mas rima com quezílias. Ontem foi um desses dias de 'ich kann nicht mehr' sem a búlgara nem homens chatos, sem sequer tempo para lamentos, mas que me deixou esta fome imoral e pecaminosa. Já não posso mais.

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