5 Apr 2019

Gabriel


O Gabriel era do reviralho. O Gabriel é do reviralho, porque uma vez do reviralho para sempre do reviralho, e ao Gabriel nunca se conheceu conformismo. Vivia os seus dias entre livros e orações e, até encontrar a mulher que o levaria a abandonar a vida dedicada às artes sacras e celibatos, aparecia muito lá em casa, abraçado a um ramo de grelos ou espigos que oferecia à minha mãe e que ela transformaria em esparregado. Cozinhar é uma alquimia. Sabemos todos disso. O Gabriel sabia disso também e talvez por isso chegar a desoras nunca foi um impedimento. A magia não tem horas, a alquimia também não e o amor muito menos.
Nesses serões éramos todos felizes, eu pré-adolescente, a minha mãe com o fulgor imparável tão típico, o meu pai com a bonomia característica e até a minha avó conseguia esquecer a filha e o marido colhidos precocemente pela senhora da foice. E havia livros e esparregado de grelos.
O meu pai, o Gabriel, a minha mãe e a mulher do Gabriel haviam de passar dias felizes, algumas décadas mais tarde, a Sul, quando ninguém era doente e a plenitude se espelhava no Guadiana que corria calmo como a vida, à sua frente. Quando um dia o Gabriel se começou a queixar de um braço ninguém antecipou que a sentença estava marcada e quando o médico anunciou sem pudor nem piedade que ele tinha a doença do Papa, o Guadiana continuou a correr tão indiferente como a anunciação do médico, mas todos nós anoitecemos um bocadinho. O Gabriel reparte os seus dias com a mais abnegada mulher, pela qual em boa hora ele abandonou rezas e batinas, a que o ama, cuida, e lhe mantém acesa a centelha cada vez mais frágil, não sabemos quando se apagará, e eu, que não sei rezar, todos os dias lhe dedico preces desajeitadas, inúteis e estéreis. Quanta impotência neste anoitecer.
Agora não somos todos felizes: a minha avó partiu para junto da filha e do marido, o meu pai escapuliu-se-nos quando o corpo o traiu, sempre preocupado com a doença do Papa do Gabriel, e o Gabriel crepuscula-se sem que haja esperança de alvorada. Nunca mais apareceu lá em casa com um bouquet de espigos. Nunca mais o ouvi subir as escadas em passo estougado. Não podíamos ser todos felizes outra vez?

Parkinson, diz que é #Parkinson.

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