2 Aug 2019

Cem cansaços


O cansaço extremo é das piores coisas que me pode acontecer. Senta-se ali ao lado da tristeza profunda e alimenta-a como se fosse Hänsel e Gretel até ficar rotunda e luzidia. Se eu deixar acabará por me atirar para o fosso claustrofóbico que trato com paciência, há-de passar, mas com tempo contado e sem complacência a partir de certa altura. Neste tempo que se adivinha de pousio dos males de exaustão, calço os ténis, uns calções, sacudo cabelos e soturnidades, e faço-me ao caminho, com o mar do meu lado esquerdo. Inspiro a maresia, cheiro o tempo e deixo que o sol e o vento me sacudam, corpo, cabelo, alma. Ainda vi alguns cansaços, os mais débeis, a voar lá para longe onde a vista não alcança. Conheço-os bem e sei como rodopiam e se contorcem antes de desaparecer.  Há carros e gente pelo caminho, uma mulher com dois filhos adultos detém-se nas plantas para lá da cerca de madeira e murmuram algo inaudível. Desço depois até à praia pela escadaria de madeira, e imagino-me a libertar-me da roupa sobre a areia, a saltitar nas pontas dos pés com a subtileza das mulheres que não tenho, nádegas e cabelo ao ritmo desse caminhar leve, até ao mar onde mergulharei sem hesitar. Arrumo a ilusão, mulher, aquilo é o mar da Ericeira, congelar-te-á as partes mais recônditas do corpo, falta-te a graciosidade das mulheres nuvem, e subo as escadas que me parecem infindáveis no zénite que agora se pôs. Retorno com o mar pela direita desta vez, o zénite discreto deste agosto tímido e a maresia por companhias. Quando chegar a casa, pendurarei os cansaços à porta, tenho a certeza, amarfanhados em sacos, lá no cemitério das coisas moribundas onde relego o que não tem remédio, descartá-los-ei um a um, todos. Só assim conseguirei ver o sol, o mar, a maresia, a imaginar-me destemida rumo ao mar. Preciso muito de os conseguir ver. Preciso muito de me conseguir ver. Sem cansaços.

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