Não havia se não leveza naqueles
dias a sul. O calor, o abandono dos corpos, o arremessar das tarefas
quotidianas, o fardo das obrigações que via Guadiana abaixo, e o meu pai que
imaginava naquele mesmo lugar e a quem sempre homenageei na intimidade de mim.
Depois saíamos para jantar e sentavamo-nos na esplanada do restaurante a servir
de pasto para as melgas, e paradoxalmente felizes e gratos por tudo. A mulher
servia-nos quase sempre. Era alta, de cabelo negro comprido sempre amarrado num
rabo-de-cavalo longo que abanava quando ela se deslocava entre as mesas e que
obedecendo à gravidade se estendia como um pêndulo no corpo esguio e magro.
Tinha olhos negros aos quais não era fácil arrancar um sorriso, tinha uma irmã
com filhos e tratava as crianças da casa com intimidade. Não havia suavidade no
seu trato. Havia rispidez e eficiência, rapidez e pouco tempo para conversa
mole. A mulher trouxe-me muitas vezes a felicidade nas fritadas de peixe, so
por isso poderia subir ao meu Olimpo, nas sardinhas alimadas ou albardadas, nos
bifes de atum com pores-do-sol rubros e o casario incendiado da luz que se
crepuscula na Espanha na outra margem. A mulher forte e incansável era também
os dias a sul. Um dia de maio a notícia soou 'mais uma', e o pressentimento de
que poderia ter sido a mulher do cabelo longo, dos olhos negros, a mulher-mãe,
a mulher jovem e esguia tão resoluta e eficiente, com uma vida pela frente. Não
lhe sabia o nome até então. "Sónia Ribeiro, 37 anos, Vila Real de Santo
António, no Algarve. Foi a filha mais velha, de 16 anos, que a encontrou ao fim
da manhã, pelas 11h30, quando regressava da escola. (...) O corpo, caído no
chão, tinha pequenas perfurações no peito e uma maior perto do coração, que se
soube mais tarde terem sido feitas com um picador de gelo, quando Sónia já
estaria morta por asfixia." O meu sul nunca mais será o mesmo. O dela
deixou de ser.
Em memória da Sónia Ribeiro.
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