27 Jul 2020

Traços descontínuos

Ao que parece os programas sobre futebol na SIC N acabaram. Parece que eram tóxicos e isso. Para mim que de futebol só vejo o garbo de alguns jogadores, ai meu rico Virgil van Dijk, vá, chamem-me sexista agora, os programas eram uma grande peixeirada. Se fossem mulheres estariam todas ou com tpm ou com o período ou na menopausa ou com falta de homem. As mulheres têm sempre algo que desculpe as suas convicções e justifique a sua determinação. Assim eram só machos-alfa a discutir fervorosamente o desporto-rei, rapazes entusiasmados com a bola, já se sabe como são e desculpam-se os exageros, os decibéis e algum desajuste de linguagem. "A SIC Notícias decidiu descontinuar os programas de desporto (...)" anunciaram. E o que eu gosto deste 'descontinuar', que belo eufemismo. Vou passar a usar nas mais variadas situações: 'peço desculpa, mas a minha paciência para te aturar foi descontinuada'. Pode ser a paciência de tudo, de ouvir dislates, e até a vontade de pessoas, 'a minha vontade de ti foi descontinuada', na escola posso sempre alegar que 'o cumprimento acéfalo de tarefas burocráticas foi descontinuado' e passarei a fazer o que a inteligência e o pragmatismo prescreverem, correndo o sério risco de me descontinuarem também. E quando me acharem muito diferente posso sempre alertar para o óbvio 'essa mulher de que falas foi descontinuada', tal como o cano do meu aspirador quando lhe virei as escovas de borco, ele se finou num estalido seco, e quis comprar um cano novo, também ele tinha sido descontinuado. Como nós todos, peças que se descontinuam, a pele lisa, as mamas hirtas, o contorno do rosto, as pálpebras, as barrigas firmes de onde se avistavam os pêlos púbicos. Neste covidiano as possibilidades são infinitas, a pior delas todas é a liberdade ter sido descontinuada e com ela quase os afectos e o toque, os beijos, os abraços, a proximidade, a genuinidade da aproximação quando revemos ou conhecemos alguém. Descontinuámo-nos.

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