Tinha um relógio branco com
ponteiros cor de pôr-do-sol de outono e bracelete a condizer. Os braços magros
e beijados pelo sol sobressaíam do top branco e da máscara verde e laranja com
padrão de penas de pavão, o cabelo liso como se tivesse gotículas de chumbo a
obrigá-lo a sucumbir à gravidade. Depois havia dois rapazes de camisa aos
quadrados sobre as t-shirts brancas. Não há temperatura na adolescência. Há
estilo que dita umbigos ao léu em pleno inverno e camisas axadrezadas num dia
de canícula superlativa. E isto digo eu que já fui adolescente e usei camisas
de flanela e umbigo à mostra, o tempo é sempre relativo e nós também, se calhar
é tudo: este escrever, este sentir, os carros que passam lá fora, a brisa que
de repente ulula da porta. A rapariga dos ténis pretos inquietou-se agora,
abana as pernas nas calças de padrão azul e branco nervosamente, muda a posição
dos pés e ajeita a máscara que lhe oculta um rosto que se adivinha belo
enquanto eu de vestido de flamingos acho que sei alguma coisa do mundo além da
dor irritante do dedo mínimo do pé esquerdo que me traz agastada e irritada vai
para quatro dias já.
O rapaz lá ao fundo leva as mãos
à cabeça para que não lhe fujam fórmulas e equações e coordenadas ou o que era
aquilo, e depois acaricia a própria orelha, desconheço a razão mas não
precisamos da razão de tudo, às vezes pode servir a sensação, o erotismo de
pequenos gestos, ou grandes. Passam carros lá fora, e autocarros que não deixam
de ser carros, e os pássaros chilreiam nos pinheiros mansos que hão-de ter uma
placa a identificar-lhes a espécie, Pinus pinea, um rótulo como se põe aos
outro: cigano, estrangeiro, paneleiro, puta, preto, vaca, mas este é só o
inofensivo pinheiro Pinus pinea, o rótulo não o mata nem seca, os outros sim.
O rapaz de olhos amendoados areja
o nariz fora da máscara, enquanto o de calções e pernas peludas perde o olhar
no ar. Se calhar procura o conhecimento no éter. Como a rapariga da máscara com
penas de pavão, a miúda das calças inquietas, os rapazes das camisas aos
quadrados. Se o encontrarem atribuir-lhe-ão um rótulo como o do pinheiro Pinus
pinea e tudo se resume a estes 150 + 30m de tolerância. A rapariga dos olhos
luminosos estende o cabelo em circunferência e esconde-se da manhã de sol num
mês que talvez seja julho e quase sei que lá fora a esperará um namorado
imberbe que lhe assegurará a ilusão do amor eterno e lhe reclamará a posse até
ela descobrir que ninguém é de ninguém. Pode demorar.
O dedo do pé esquerdo continua a
doer, preciso de um café bem forte e não sei muito bem o sentido disto tudo.
São dez horas e trinta e seis minutos.
15 Jul 2020
Código 635 150 minutos + 30 de tolerância
gavetas:
para lá dos portões
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