15 Jul 2020

Código 635 150 minutos + 30 de tolerância

Tinha um relógio branco com ponteiros cor de pôr-do-sol de outono e bracelete a condizer. Os braços magros e beijados pelo sol sobressaíam do top branco e da máscara verde e laranja com padrão de penas de pavão, o cabelo liso como se tivesse gotículas de chumbo a obrigá-lo a sucumbir à gravidade. Depois havia dois rapazes de camisa aos quadrados sobre as t-shirts brancas. Não há temperatura na adolescência. Há estilo que dita umbigos ao léu em pleno inverno e camisas axadrezadas num dia de canícula superlativa. E isto digo eu que já fui adolescente e usei camisas de flanela e umbigo à mostra, o tempo é sempre relativo e nós também, se calhar é tudo: este escrever, este sentir, os carros que passam lá fora, a brisa que de repente ulula da porta. A rapariga dos ténis pretos inquietou-se agora, abana as pernas nas calças de padrão azul e branco nervosamente, muda a posição dos pés e ajeita a máscara que lhe oculta um rosto que se adivinha belo enquanto eu de vestido de flamingos acho que sei alguma coisa do mundo além da dor irritante do dedo mínimo do pé esquerdo que me traz agastada e irritada vai para quatro dias já.
O rapaz lá ao fundo leva as mãos à cabeça para que não lhe fujam fórmulas e equações e coordenadas ou o que era aquilo, e depois acaricia a própria orelha, desconheço a razão mas não precisamos da razão de tudo, às vezes pode servir a sensação, o erotismo de pequenos gestos, ou grandes. Passam carros lá fora, e autocarros que não deixam de ser carros, e os pássaros chilreiam nos pinheiros mansos que hão-de ter uma placa a identificar-lhes a espécie, Pinus pinea, um rótulo como se põe aos outro: cigano, estrangeiro, paneleiro, puta, preto, vaca, mas este é só o inofensivo pinheiro Pinus pinea, o rótulo não o mata nem seca, os outros sim.
O rapaz de olhos amendoados areja o nariz fora da máscara, enquanto o de calções e pernas peludas perde o olhar no ar. Se calhar procura o conhecimento no éter. Como a rapariga da máscara com penas de pavão, a miúda das calças inquietas, os rapazes das camisas aos quadrados. Se o encontrarem atribuir-lhe-ão um rótulo como o do pinheiro Pinus pinea e tudo se resume a estes 150 + 30m de tolerância. A rapariga dos olhos luminosos estende o cabelo em circunferência e esconde-se da manhã de sol num mês que talvez seja julho e quase sei que lá fora a esperará um namorado imberbe que lhe assegurará a ilusão do amor eterno e lhe reclamará a posse até ela descobrir que ninguém é de ninguém. Pode demorar.
O dedo do pé esquerdo continua a doer, preciso de um café bem forte e não sei muito bem o sentido disto tudo. São dez horas e trinta e seis minutos.


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