2 Aug 2020

Fim de tarde e isso

O sol de fim de tarde tem a brandura de um amor ternurento. Aquece-me o braço e a perna direita enquanto me sento no degrau morno de um dia de verão incerto, o mais certo dia de verão a oeste. Sopra vento de baixo e que pelos pontos cardeais por onde me oriento seria de oeste, vem do mar, e o mar está a oeste mas forte e impiedoso só pode ser do norte, não tem meias palavras nem cerimónias, poucas concessões e a determinação irritante dos teimosos solitários. Faço sombra à Julieta, sentada de pernas escachadas sem pudor e pés nus no chão. A roupa estendida ondula ao sabor do vento e eu vejo as várias mulheres no macacão preto, no vermelho, no de flores brancas e verdes com um centro amarelo, sou menos eu no vestido longo e fluido de flores pequenas que desencantei na memória do guarda-roupa. Se calhar quero ser o que já não sou mas o vestido serve-me, assenta no peito na perfeição. Talvez não seja assim tão outra. Agora que me virei tenho o sol de frente e uma revoada de vento açoita os pedaços com que cubro o corpo, até as intimidades resguardadas se agitam levemente, e o perfume do detergente em promoção no supermercado augura a sensualidade dos lençóis lavados e secos ao vento e ao sol. Os estendais contam tantas estórias e desvendam outras tantas intimidades, se os observamos atentamente. Um olhar indiscreto sobre quem somos por baixo do que aparentamos ser, de gravatas e composturas, blusas imaculadas de ferros prendados. Velha, um dia, podia sentar me numa cadeira de abrir ou de fechar, é sempre tudo uma questão de perspectiva, e contar os outros com as mãos cruzadas sobre a barriga rotunda, se calhar nessa altura já teria barriga, mas os escritores não se revelam em cadeiras de abrir, agora está frio, eu tenho de apanhar a roupa e também nunca serei escritora.

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