1 Oct 2020

Corar ao luar

 Podia ser aquela camisola preferida, o top cinzento de momentos de solidão aprazível, o vestido cor de abóbora que me disseram hoje ficar a condizer com a casa de banho da escola, ou as botas de camurça que levaste na correria do quotidiano para a cozinha e que salpicaste com o azeite virgem suave, nem sei de onde vêm estas expressões ridículas de virgindade patriarcal. Podes ser tu. A vida que te salpica de manchas para as quais não há solução, não são nódoas, são marcas. Tu não sabes. Ainda. E lavas. Lavas outra vez, esfregas com a raiva de dias amargos e se tomares atenção, repara bem, continuam lá, mais ou menos percetíveis, os outros não vêem. Estendes-te ao sol, deixas-te corar ao luar, com sorte apanhas orvalho e estarás hirto e gelado que nem bacalhau da Islândia ou da Noruega, tanto faz para ti, que tremendo disparate e que grata memória de infância. Não saiu a marca. Esfregas-te mais. Outra vez. Outra ainda. Vê lá se se notas alguma coisa. Não vejo nada, dizem-me, não se nota. Tu sabes que não se nota. Que notam os outros de ti? Lavas a vida inteira, esfregas, coras-te ao luar. Tu és o top cinzento, as botas de camurça, se calhar o vestido cor de abóbora. Desiste de esfregar. Esquece o corar ao luar. Não sai mais. Vê lá se notas alguma coisa. Não vejo nada, dizem-me. Eu sei.

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