30 Jul 2020

Crescente

Sem lentes nem óculos, a lua está envolta em névoa enquanto me espreguiço do dia e o deixo partir com a brisa muda. Longe. Vai. Larga-me agora que a noite me abraça num verão fingido e me lambe os braços com a cerimónia dos amores inexperientes. Fecho os olhos como no tempo em que adentrava a noite sem óculos nem lentes e os cerrava em fresta como foco, que mania esta de fechar os olhos para ver melhor, logo à noite em que, dizem, todos os gatos são pardos, como se todos os gatos fossem sempre pardos. Depois procuro na miopia e na névoa a fase da lua. Cresce? Não me sei às vezes.

27 Jul 2020

Traços descontínuos

Ao que parece os programas sobre futebol na SIC N acabaram. Parece que eram tóxicos e isso. Para mim que de futebol só vejo o garbo de alguns jogadores, ai meu rico Virgil van Dijk, vá, chamem-me sexista agora, os programas eram uma grande peixeirada. Se fossem mulheres estariam todas ou com tpm ou com o período ou na menopausa ou com falta de homem. As mulheres têm sempre algo que desculpe as suas convicções e justifique a sua determinação. Assim eram só machos-alfa a discutir fervorosamente o desporto-rei, rapazes entusiasmados com a bola, já se sabe como são e desculpam-se os exageros, os decibéis e algum desajuste de linguagem. "A SIC Notícias decidiu descontinuar os programas de desporto (...)" anunciaram. E o que eu gosto deste 'descontinuar', que belo eufemismo. Vou passar a usar nas mais variadas situações: 'peço desculpa, mas a minha paciência para te aturar foi descontinuada'. Pode ser a paciência de tudo, de ouvir dislates, e até a vontade de pessoas, 'a minha vontade de ti foi descontinuada', na escola posso sempre alegar que 'o cumprimento acéfalo de tarefas burocráticas foi descontinuado' e passarei a fazer o que a inteligência e o pragmatismo prescreverem, correndo o sério risco de me descontinuarem também. E quando me acharem muito diferente posso sempre alertar para o óbvio 'essa mulher de que falas foi descontinuada', tal como o cano do meu aspirador quando lhe virei as escovas de borco, ele se finou num estalido seco, e quis comprar um cano novo, também ele tinha sido descontinuado. Como nós todos, peças que se descontinuam, a pele lisa, as mamas hirtas, o contorno do rosto, as pálpebras, as barrigas firmes de onde se avistavam os pêlos púbicos. Neste covidiano as possibilidades são infinitas, a pior delas todas é a liberdade ter sido descontinuada e com ela quase os afectos e o toque, os beijos, os abraços, a proximidade, a genuinidade da aproximação quando revemos ou conhecemos alguém. Descontinuámo-nos.

25 Jul 2020

O vizinho mudou. Estendo as pernas ao sol para Oeste. Não há brisa. Há vento a cansar os canaviais, o chapéu de sol geme e retiro os chinelos do sol. São pretos e sei que me aquecerão as solas dos pés em fornalha quando os voltar a calçar. São 16.54. Não posso deixar passar a hora do anti-inflamatório, lá para as 17.30, quando o sol tiver descido e o meu corpo for todo iluminado pelo astro-rei, não é o caso agora, e também não é importante porque agora mesmo sopra um vento mais forte e tocam as badaladas do sino da aldeia dois minutos antes do esperado e ninguém quer saber de corpos ao sol, vento e Oeste. Se pudesse enterrava os pés na relva e mexia os dedos alternadamente, tão infantil e inesperado como quando saio a porta e respiro as noites frescas que me açoitam os braços e bebo o silêncio das noites mudas. Que me terá dado para passar a apreciar a morrinha das noites de nevoeiro e o açoite fresco nos braços? Mudei. Se calhar. Talvez mais do que o vizinho que largou Lady in Red e agora ouve Ed Sheeran e a Cardi B com outro caramelo qualquer. Antes assim. Mudámos todos e mudamos sempre, que os deuses nos permitam a mudança.
São 17.14 e não me posso esquecer do anti-inflamatório.

18 Jul 2020

Domingos assim

Hoje ninguém cortou relva, aparou as sebes ou podou o canavial. Hoje nem o Lady in Red tocou a altos berros nas colunas do vizinho umas casas abaixo perto do da sebe e também não houve rock delambido que nos atirava para os corpos inexperientes nas décadas em que a televisão era a preto e branco. O sino da aldeia tocou agora, sem ambição de carrilhões da vila, deram-lhe dois açoites bem dados, grunhiu duas badaladas e votou-se ao silêncio. A araucária ergue-se-me hirta entre as pernas flectidas e também há uma chaminé encimada com um triângulo. Não houvesse pássaros e talvez fosse isto o silêncio. Não fosse isto o Oeste e o sol continuaria brilhante de azuis estridentes. Não fosse eu eu e isto era só uma mulher deitada numa espreguiçadeira numa tarde de sábado a ver chegar a neblina. Se não te desse para escrever baboseiras era o que fazias de melhor, ó.

16 Jul 2020

Espera

Sento-me no lambril com os pés nus na relva à espera da brisa. Espero. Talvez seja ela que vem lá ao longe, ouvi-a passear-se nos pinheiros ou talvez no canavial, ainda não aprendi a linguagem das árvores, talvez seja. O corpo denuncia o calor, abandonado e livre das amarras do dever do decoro social. Estendo as pernas nuas e interrompo o silêncio com o restolhar da relva. Há um cão de ladrar agudo que reclama lá longe. Se calhar, podia estender-me na espreguiçadeira e sonhar os sonhos perdidos ou captar vontades e espíritos que a noite larga quando apaga o dia, enquanto espero. Soubesse eu de estrelas e planetas e saberia o que é aquilo que brilha sobre a copa dos pinheiros, se tivesse óculos saberia se é uma estrela ou um planeta mas a noite quer-se terna e ver de mais não ajuda ao apaziguar das almas. Sem lentes nem óculos sei do aroma da humidade sobre a relva e sobre as hidrângeas, sei do estio que se abateu sobre o mato seco, sei da hortelã. Espero. Não vem. Quase parece um amor perdido. Não espero mais. Boa noite. Que noite boa. Cala-te, cão.

15 Jul 2020

Código 635 150 minutos + 30 de tolerância

Tinha um relógio branco com ponteiros cor de pôr-do-sol de outono e bracelete a condizer. Os braços magros e beijados pelo sol sobressaíam do top branco e da máscara verde e laranja com padrão de penas de pavão, o cabelo liso como se tivesse gotículas de chumbo a obrigá-lo a sucumbir à gravidade. Depois havia dois rapazes de camisa aos quadrados sobre as t-shirts brancas. Não há temperatura na adolescência. Há estilo que dita umbigos ao léu em pleno inverno e camisas axadrezadas num dia de canícula superlativa. E isto digo eu que já fui adolescente e usei camisas de flanela e umbigo à mostra, o tempo é sempre relativo e nós também, se calhar é tudo: este escrever, este sentir, os carros que passam lá fora, a brisa que de repente ulula da porta. A rapariga dos ténis pretos inquietou-se agora, abana as pernas nas calças de padrão azul e branco nervosamente, muda a posição dos pés e ajeita a máscara que lhe oculta um rosto que se adivinha belo enquanto eu de vestido de flamingos acho que sei alguma coisa do mundo além da dor irritante do dedo mínimo do pé esquerdo que me traz agastada e irritada vai para quatro dias já.
O rapaz lá ao fundo leva as mãos à cabeça para que não lhe fujam fórmulas e equações e coordenadas ou o que era aquilo, e depois acaricia a própria orelha, desconheço a razão mas não precisamos da razão de tudo, às vezes pode servir a sensação, o erotismo de pequenos gestos, ou grandes. Passam carros lá fora, e autocarros que não deixam de ser carros, e os pássaros chilreiam nos pinheiros mansos que hão-de ter uma placa a identificar-lhes a espécie, Pinus pinea, um rótulo como se põe aos outro: cigano, estrangeiro, paneleiro, puta, preto, vaca, mas este é só o inofensivo pinheiro Pinus pinea, o rótulo não o mata nem seca, os outros sim.
O rapaz de olhos amendoados areja o nariz fora da máscara, enquanto o de calções e pernas peludas perde o olhar no ar. Se calhar procura o conhecimento no éter. Como a rapariga da máscara com penas de pavão, a miúda das calças inquietas, os rapazes das camisas aos quadrados. Se o encontrarem atribuir-lhe-ão um rótulo como o do pinheiro Pinus pinea e tudo se resume a estes 150 + 30m de tolerância. A rapariga dos olhos luminosos estende o cabelo em circunferência e esconde-se da manhã de sol num mês que talvez seja julho e quase sei que lá fora a esperará um namorado imberbe que lhe assegurará a ilusão do amor eterno e lhe reclamará a posse até ela descobrir que ninguém é de ninguém. Pode demorar.
O dedo do pé esquerdo continua a doer, preciso de um café bem forte e não sei muito bem o sentido disto tudo. São dez horas e trinta e seis minutos.


11 Jul 2020

Dia(s)

A minha portada é quase sempre a entrada do dia, marca o tom, a neblina pode acordar-me como uma chuva mansa, uma carícia indelével no rosto, ou um açoite impiedoso de vento antecipado pela dança do azevinho com a glicínia, de noite amam-se sempre sem recato, eu ouço-os quando a insónia me ameaça o dia e me rasga a noite em duas. Da minha portada hoje recebi o beijo doce dos dias límpidos de céu azul, aqui pode sempre ser no verão, outono, ou qualquer outra estação íntima do calendário pessoal. No meu é um dia bonito de azul terno e sol vibrante. Vestir uns calções, calçar uns ténis e ir beber maresia. Bom dia.

10 Jul 2020

Frampton comes alive

Isto deve ser por lá uma resposta a um estímulo que foi assim que os behavioristas apelidaram este processo de reagir sem pensar a algo que nos toca. Eu sou um animal bastante reagente. Não posso ver mar que me apetece cheirá-lo, não posso ver uma imagem de ouriços, ostras, um belo gin tónico, que me apetece comê-los e tomá-lo, e se vir uma cidade bela apetece-me correr-lhe para os braços e fazer-lhe amor, o erotismo do belo é tramado, graças aos deuses coibo-me de cheirar pescoços perfumados, este meu nariz é a minha bússola, a minha desgraça e a minha felicidade sensorial, a minha vida.
Acontece o mesmo com a música e as palavras. Umas levam a outras, o Chardonnay conduz-me para o 'Ironic' da Alanis Morissette, o que não é mau porque é uma grande canção. Se ouvir 'Jump" é sempre Go ahead, jump, se estiver contrariada ouço 'You can't always get what you want' e se andar colorida 'She's like a rainbow.' Em dias de trevas, e tenho alguns, é Amy, sempre, este processo de arranhar feridas é bem mais preocupante do que o behaviorismo, nos ocasos de outono Johnny Lee Hooker, 'something's gonna change', e como sou falta de ar 'Breathe' assalta-me muito, ora de Midge Ur ora de Pearl Jam, mais 'just' menos 'just'. E depois disto tudo, aqui está ao que venho: é que tenho encontrado o Peter Frampton ali na estrada nacional quando vou e venho de Mafra. Está magrito, usa sempre a mesma t-shirt e uns calções, a trunfa não engana e nos meus ouvidos só ouço 'oh won't you, show me the way/ I want you show me the way'. Há dois dias que ando nisto. Não podia ser antes o Lenny Kravitz, ou Jon Bon Jovi, ou o Ben Harper ou o Sting com menos dez anos? Podia ser que conseguisse esquecer a música se visse estes miúdos no passeio pedonal, estrada nacional 116. 'I want to get away, I wanna fly away'.